por Thais Garrafa *
“Que horas ela volta?”, filme escrito e dirigido por Anna Muylaert, põe em cena o conflito de classes que se expressa no convívio doméstico entre patrões e empregados. Um retrato fiel das contradições que permeiam a dança entre o legado histórico escravocrata e a recente ascensão socioeconômica de inúmeros brasileiros. O ambiente familiar e doméstico do filme permite que o tema da maternidade seja tratado de forma rica e fértil, pois assistimos, num mesmo cenário, a experiência de duas mães bastante diferentes entre si em termos culturais e econômicos, mas em certa medida parecidas na distância que mantêm de seus filhos. A despeito da diversidade de elementos que poderiam ser abordados em relação ao filme, falaremos aqui de suas contribuições para se pensar a experiência da maternidade
Bárbara é a rica dona da casa que entregou à babá os cuidados com Fabinho; Val é a empregada doméstica que, ao vir para São Paulo, deixou sua filha Jéssica aos cuidados de outra mulher. Entre Bárbara e Fabinho, a distância não é física, mas os corpos não se encontram: ele não sorri para fazer brilhar os olhos da mãe e não se aninha em seus braços e carinhos como faz com Val. Entre Val e Jéssica, é a distancia geográfica que a princípio dá forma e enredo a esse descompasso, mas com a vinda da jovem para São Paulo, torna-se notável o desencontro entre mãe e filha.
Como bem se estabeleceu no campo da Psicologia e no da Psicanálise, não é necessária a coincidência entre a figura da mãe e a pessoa que exerce a função materna. Nesses dois campos, a ausência da mãe - que volta tarde ou que nunca voltará – não representa entrave para que um sujeito se constitua e se desenvolva.
A possibilidade de haver “função materna sem mãe” é consensual e tem se mostrado imune a divergências teóricas. As crianças criadas por avós, madrinhas, irmãos mais velhos ou mesmo acolhidas em serviços institucionais atestam cotidianamente essa possibilidade. Menos evidente, porém, é a constatação do inverso: a existência da “mãe sem função materna”, isto é, da mulher que se identifica e se estrutura psiquicamente como mãe, embora não exerça os cuidados com o filho.
Nesse âmbito, o senso comum tende a fazer sua objeção: “mãe é quem cria”, recaindo no julgamento moral sobre a qualidade da dedicação materna. Por vezes, é o próprio filho quem priva a mãe de seu vocativo e a chama pelo nome próprio, como vemos na relação de Jéssica com Val. Mas para a mulher que se reconhece como mãe, essa questão não se coloca da mesma forma. Val, apesar dos dez anos sem procurar a filha, não deixa de se identificar como mãe e de pensar cotidianamente na menina. Bárbara, ao seu modo, também não percebe na distância corporal com Fabinho um abalo em sua posição materna. Situação semelhante pode ser observada em algumas mães de crianças e adolescentes em instituições de acolhimento, ou mesmo por aquelas cujas crianças faleceram. O que vemos em todos esses casos é a que a perda do filho ou o distanciamento em relação aos seus cuidados não são suficientes para que uma mãe deixe de se reconhecer como tal.
A maternidade não se restringe, pois, à experiência de cuidados e trocas afetivas; ela se passa também na estruturação de um descentramento subjetivo em que a mulher passa a ancorar algo de sua existência no filho. A nomeação “mãe de fulano” dá lugar identitário a esse descentramento, o que é ainda mais evidente nas culturas em que o nome do filho altera o nome da mãe; em yorubá, por exemplo, com o nascimento de uma criança chamada Kayin, sua mãe passa a se chamar Ya Kayin, mãe de Kayin. Nesse sentido, tenho proposto que a maternidade seja pensada como uma posição psíquica assumida por uma mulher que pode, ou não, desempenhar a função materna. Reconhecer a insuficiência conceitual da expressão “função materna” nos aproxima das questões se colocam para as mulheres em sua posição de mãe.
Tenderíamos a cair na tentação de julgar e condenar a relação de Bárbara com seu filho, e a querer diferenciá-la da situação de sua funcionária. Em um olhar desatento, pensaríamos que a dona da casa poderia se encarregar do filho, mas não o faz por falta de vontade ou por futilidade, enquanto a doméstica, afetiva e cuidadosa com Fabinho, seria tristemente impedida por questões socioeconômicas de se aproximar de sua filha. Mas, sem desconsiderar a força das imposições colocadas às situações de maior vulnerabilidade social e da particular exploração das trabalhadoras domésticas, podemos nos aproximar um pouco mais do universo psíquico das personagens, e, dessa forma, das questões que permeiam o tema da maternidade se notarmos que, tanto para uma quanto para outra, há algo da distância em relação aos filhos que escapa ao plano das explicações conscientes.
Alienada dessa questão, Bárbara não está para o filho e não parece entrar em contato com essa dimensão a não ser nos momentos em que se depara com a intimidade dele com outra mulher – seja na brincadeira com Jéssica na piscina ou no abraço acolhedor de Val após a reprovação no vestibular. Bárbara então se afeta pela angústia em relação ao seu distanciamento, mas não ousa dirigir a si mesma a interrogação que a levaria a conhecer os motivos de sua ausência e a dar outro destino a tais fatores. No lugar disso, é ao filho que ela pergunta: “você não se importa comigo? Ou “por que você pode abraçar a ela e não a mim?”.
De modo análogo, Val muda de cidade e deixa de ver a filha por dez anos. Envia dinheiro, telefona, mas no contato com a filha parece-lhe indisponível para escutá-la em suas angústias e histórias mais importantes, como sua gravidez e o nascimento de seu filho. Estaria mesmo no trabalho e na necessidade financeira o único motivo da ausência materna? A jovem, que não se contenta com justificativas simplistas e conformadas sobre várias dimensões da vida, logo questiona por que a mãe passara dez anos sem vê-la. A mãe escorrega, se confunde e se embaraça: “não sei, quanto mais eu não voltava, mais eu não voltava...”.
A principal diferença entre ambas não está, portanto, no plano socioeconômico. Mas no destino que cada uma dessas mulheres pode dar à angústia engatilhada por esses encontros e desencontros com seus filhos.
Ao se encontrar com a filha, Val se atrapalha, se confunde e se angustia: quem é essa menina? O que pensa da vida? Quem pensa que é? A aproximação entre elas desassossega o estabelecido e obriga a mãe a retirar do plano da fantasia seus investimentos na jovem. Jéssica já não é a filha fantasiada, imaginada, com a qual a mãe se relaciona em seus pensamentos e contatos telefônicos, para a qual dedica parte do dinheiro suado de seu trabalho. Jéssica é outra pessoa, e é nesse encontro com a alteridade da filha que Val também passa a acolher outra versão de si mesma.
Ela transgride, rompe com uma estrutura de dominação social e psíquica na qual se via impedida de almejar novas formas de vida. Deixa o emprego e mesmo o vínculo intenso com Fabinho, cujo retorno não irá esperar; monta um pequeno espaço para morar com a filha e cuidar do neto que ainda não conhece; está disposta a uma reconstrução. Nem mesmo a questão financeira a preocupa, pois ela confia em sua capacidade de encontrar uma saída.
Talvez seja dessa revolução que muitas mulheres se protejam na distância em relação a seus filhos. Deixar-se atravessar pela alteridade do filho é o que permite o enlace da posição da mãe com o exercício da função materna, o que implica essa disposição permanente para a reinvenção de si e da vida: acolher a própria angústia, deixar cair crenças e valores arraigados, abrir-se à intensidade e multiplicidade dos afetos, revisitar as dores da própria história e deixar para trás construções que demandaram anos de investimento.
Bárbara não se dispõe a isso. Quando o filho não atinge as expectativas maternas, seja porque não passa no vestibular ou porque não se deixa abraçar pela mãe, ela se afeta e se angustia. Mas diante do fracasso de seu sintoma, do breve tropeço em sua vontade de estar mais próxima de Fabinho, em vez de aproveitar a porta entreaberta pela angústia para transformar-se e acolher algo de si que tem sido negligenciado em sua forma de vida, ela reforça e enrijece a solução sintomática: ao desencontro, adiciona distância, produzindo, enfim, no deslocamento geográfico uma forma de alívio para a turbulência que rapidamente se anunciou.
O filme não nos mostra o adensamento psíquico dessas personagens: seus pensamentos secretos, suas histórias de vida e seus romances familiares. Captamos, sobretudo, a dimensão da alienação psíquica e social que as circunda, o que, a nós expectadores, não é menos profundo. Nesse sentido, é importante que a força da discussão política apresentada pelo filme não escamoteie os elementos sutis e precisos situados em torno das angústias da maternidade. Que as formas clichês de exercício da função materna – da mulher rica que contrata uma babá em tempo integral ou da mulher pobre que deixa a filha no norte em busca dos provimentos financeiros – não nos impeçam de reconhecer a potência de ruptura e transformação que pode emergir da posição da mãe.
* Thais Garrafa é psicanalista, professora do COGEAE/PUC-SP, supervisora da clínica social do Instituto Gerar e colaboradora do Instituto Fazendo História.