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Violência como mal-estar. O que fazer?

 

 por Daniela Smid e Aline Souza Martins*

 

 

 

Do rio que tudo arrasta se diz que é violento.

Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.

Bertolt Brecht

 

 

Com um certo olhar acostumado, enxerga-se a violência em todo lugar. Arriscamos afirmar que ela é hoje um dos assuntos mais recorrentes na mídia e na preocupação das pessoas. Citando o doutor em Sociologia Política, Carlos Gadea (2007), a violência

Pode ser entendida como o uso deliberado da força muito além do esperado, definindo situação social de instabilidade e de relações de poder arbitrariamente construídas. Neste sentido, a violência pode ser análoga a manifestações próprias da agressividade, o controle, a exclusão e o estigma, como também de atitudes reativas que fazem dela um mecanismo de abertura de espaços sociais e de novas possibilidades nas ‘definições de situações’ sociais. (p.146)

Para Gadea a violência tem um papel de “definir um conflito”. Ou seja, um ato de violência expõe e denuncia uma situação conflituosa.

Podemos pensar em várias violências, de gênero, de classe, a ação black block, o bulliyng, o terrorismo, etc. Cada uma delas expõem conflitos nítidos, claros, fáceis de identificar, mas há ainda aquela violência que transcorre de forma velada, quase invisível.

A seguir, nos colocamos a refletir sobre os destinos da pulsão violenta, para tanto utilizaremos alguns pontos de vista sobre os conceitos e tipos de violência.

Zizez, em seu livro intitulado Violência, diferencia a violência como subjetiva e objetiva:

A violência subjetiva é somente a parte mais visível de um triunvirato que inclui também dois tipos objetivos de violência. Em primeiro lugar, há uma violência “simbólica” encarnada na linguagem e em suas formas, naquilo que Heideigger chamaria a “nossa casa do ser”. Como veremos adiante, essa violência não está em ação apenas nos casos evidentes – e largamente estudados – de provocação e de relações de dominação social que nossas formas de discurso habituais reproduzem: há uma forma ainda mais fundamental de violência que pertence à linguagem enquanto tal, à imposição de um certo universo de sentido. Em segundo lugar, há aquilo a que eu chamo violência “sistêmica”, que consiste nas conseqüências muitas vezes catastróficas do funcionamento regular do nosso sistema econômico e político. (p.17)

A violência sistêmica seria a mais invisível, permeando as relações sociais e mantendo uma pretensa ordem. Essas violências invisíveis são instituídas, institucionalizadas e ficam de forma sub-reptícia funcionando na sociedade controlando os comportamentos sem serem postas em questão.

Walter Benjamim, em sua obra Escritos sobre mito e linguagem – Para uma crítica da violência, explica que para alguns autores, a violência é um produto da natureza, no sentido de que está intrínseca à humanidade; e, para outros, um produto da história, que não é, portanto, natural ao homem, mas um produto do desejo pela dominação.

Freud estaria entre os primeiros. Em O mal-estar na cultura, ele nos coloca diante disto, dos freios de que precisamos para viver em sociedade. Para que isto se dê há um superego a ser instaurado e um egoísmo a ser combatido.

Há dois elementos constitutivos psíquicos que ficam sob recalque para que vivamos em sociedade: a sexualidade e a hostilidade. As vontades individuais devem ser em larga medida controladas para que haja convivência. Ocorre que quando se tenta refrear algo vigoroso que necessariamente surge, sempre haverá conflito.

Na equação natureza x cultura, a violência é um resto sempre presente.

Para compreender a questão da violência, vale pensar que assim como na psicanálise consideramos que os sintomas atuais de uma pessoa são reflexo de sua história infantil, também os sintomas que surgem como violências em uma sociedade têm raízes em sua história. O Brasil tem uma história tremendamente violenta e não houve ainda uma elaboração eficiente desses traumas para que se possa dar melhores destinos desta pulsão ainda tão pungente.

Para buscar essa elaboração, é preciso lembrar que a sociedade é um grupo de interação e nela

Cada pessoa que passa por outra, como estranhos aparentemente desvinculados na rua, está ligada a outra por laços invisíveis, sejam estes laços de trabalho e propriedade, sejam de instintos e afetos. Os tipos mais díspares de funções tornaram-na dependente de outrem e tornaram outros dependentes dela. (Elias, N. 1994)

Não parece possível conter na linguagem os acordos para que se limitem os atos de violência, mas acreditamos que apesar de ser algo de que não podemos nos livrar, ela não pode ser permitida, é necessário contê-la, ou melhor, dispor de alternativas para destiná-la de forma mais produtiva e sublimada. Deve haver um esforço constante para lidar com essa atuação que irrompe fortemente nas situações de conflito para que a solução não seja violenta ou mortal. As artes, a educação, a cultura em geral poderia permitir melhores destinos para a violência intrínseca do ser humano. Ao mesmo tempo, toda ação violenta que ocorrer, inescapável que é, deve ter seu conflito-denúncia ouvido. Nenhuma sociedade pode apenas punir a violência sem compreender por que ela ocorreu e tentar solucionar a questão.

 

BIBLIOGRAFIA

Benjamin, Walter. Escritos sobre mito e linguagem: Para uma crítica da violência. São Paulo: Editora 34, 1990, p. 123.

Elias, Norbert. (1994) A sociedade dos indivíduos I. In A Sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor

Freud. Sigmund. O mal-estar na cultura. Porto Alegre. L&PM, 2010.

Gadea, Carlos A. (2007). Violência e invisibilidade dos movimentos sociais . Anais do II Seminário Nacional: Movimentos Sociais, Participação e Democracia, 25 a 27 de abril de 2007, UFSC, Florianópolis, Brasil.

Zizek, S. Violência. São Paulo: Boitempo, 2014.

 

 

* Aline Souza Martins - psicóloga, psicanalista e mestre em psicologia clínica pela USP.

 


 dani-homeDaniela Smid é psicóloga graduada pela USP e especialista em sexualidade pela Faculdade de Medicina da USP. Psicanalista em formação pelo Instituto Sedes Sapientiae e interessada em pesquisas sobre gênero, feminismo, corpo, psicopatologias do social e medicalização da vida.
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