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Aspectos Psicológicos da Violência Policial

Quero começar a coluna de hoje me desculpando com os leitores pela ausência de textos durante algumas semanas. Eu me mudei para a França (ficarei por aqui durante seis meses) e a adaptação foi bastante trabalhosa. Mas estou de volta e com um tema bem brasileiro: a violência policial (não que ela não exista aqui na Europa. Existe sim! Mas, obviamente, é difícil se igualar à “liderança” brasileira nesse quesito).

O motivo desse tema é a recente escolha de um artigo que escrevi para o segundo lugar no Prêmio Marcus Vinícius de Direitos Humanos, promovido pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. Quer quiser ler o texto na íntegra (e também os outros trabalhos premiados, todos eles muito interessantes) o link é o http://www.crpsp.org.br/marcusvinicius/artigos.aspx

Em resumo, nesse artigo, eu tento explicar porque os familiares de pessoas mortas pela polícia parecem viver um processo de luto que nunca termina. E o centro da resposta a essa pergunta está no processo de revitimização constante ao qual essas pessoas são submetidas, especialmente por conta de sucessivas violências cometidas pelo próprio Estado contra elas.

Esse processo de revitimização tem várias facetas. Assim, um primeiro elemento que poderíamos destacar é a morte cumulada com a ausência de um corpo para enterrar. Isso é algo que mantém as feridas constantemente abertas. Afinal, como enterrar simbolicamente alguém (e o que é o luto senão o enterro de alguém no plano simbólico?) sem um corpo que facilite esse processo no plano concreto?

Mas mesmo quando não se trata de casos de “desaparecimento”, ou seja, mesmo quando há um corpo que pode passar pelos rituais que facilitam a despedida do ente querido (velório, enterro, etc.), os casos de letalidade policial se assemelham sempre pelo caráter de péssima investigação a respeito dessas mortes. Essa falta de informações é também elemento de revitimização, pois mantém o conflito em aberto. Além disso, pela oposição do próprio Estado ao esclarecimento da situação, é comum que os familiares se engagem individualmente na investigação do ocorrido, em uma tentativa desesperada de suplantar a omissão estatal a esse respeito. E isso, obviamente, também tende a dificultar o luto. Não saber o que aconteceu faz com que o sujeito fique revivendo constantemente o sofrimento.

Se, por um lado, a relação com a própria polícia nas delegacias, o reconhecimento do corpo no IML e tantas outras instâncias oficiais foram marcadas por uma violência opressiva, o processo judicial, que em tese seria o responsável pela punição dos responsáveis, aparece na experiência desses familiares como um imenso lugar vazio. Uma ausência da Justiça que ensurdece pelo que não diz. Para além do fato de que 99% dos casos de violência policial são arquivados pelo Ministério Público após inquéritos muito mal conduzidos (Cf. D’ELIA FILHO, 2015), mesmo quando existe, a vítima não é a principal peça do processo judicial. Ao contrário, a versão mais importante das mortes é a dada pelos próprios policiais envolvidos no crime. Sem conseguir fazer com que a sua narrativa dos acontecimentos seja efetivamente considerada em qualquer documento público relevante, os familiares são, mais uma vez, emudecidos. Um silenciamento que se manifesta, muitas vezes, em depressões profundas.

De modo resumido, pudemos identificar que, como há um elemento público na dor dessas pessoas, já que ela foi causada por um agente do Estado (policial), a reparação desse sofrimento deve ser igualmente pública. Daí o atendimento clínico em consultório individual ser importante mas completamente insuficiente para bem encaminhar esses casos. O reconhecimento social da injustiça sofrida é o primeiro passo para que o luto possa acontecer e, assim, minimamente, permitir com que os familiares dos mortos pela polícia possam tentar continuar com suas vidas.

 


mathias glens homeMathias Vaiano Glens é psicólogo graduado pela USP e possui mestrado em políticas públicas para a infância e adolescência pela mesma universidade. Sua dissertação, “Órfãos de Pais Vivos: uma análise da política pública de abrigamento no Brasil” está disponível para download. Realizador desde 2016 do podcast Psicologiacast. Atualmente, é psicólogo do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. É palestrante nas áreas que envolvem Psicologia e Direitos Humanos e consultor/supervisor de instituições que trabalham na área social, inclusive realizando cursos e capacitações. Atua também na área clínica em consultório particular. Para acompanhar suas atualizações e publicações, siga-o no Twitter: @GlensMathias.