Os problemas alimentares vêm aumentando nas últimas décadas. A obesidade já se tornou uma epidemia. Os quadros de anorexia, bulimia e distúrbio compulsivo de alimentação continuam crescendo. Há poucos anos atrás as mulheres jovens eram as principais vítimas. Hoje, os homens adultos também sofrem desses sintomas graves.
O aumento desses quadros atesta que algo muito estranho em relação ao corpo e ao comer ocorre em nossa sociedade.
Diante de um prato de comida as pessoas parecem perdidas e culpadas. Contam calorias e comentam sobre o potencial nocivo dos alimentos. O comer não está mais ligado aos sinais de fome e de saciedade. Tornou-se difícil saborear os alimentos, saber a hora de parar de comer, perceber quando se tem fome. Já não existe a escolha dos alimentos por livre e espontânea vontade. Comer se tornou um ato desconectado dos sinais internos que deveriam regulá-lo.
Sentimos medo constante de engordar ou de prejudicar a saúde. Procuramos orientação científica. Desaprendemos a comer. Nossa sociedade se tornou fóbica em relação a comida.
É raro encontrar alguém que não se sinta inferiorizado pela aparência. Refiro-me às queixas sobre o corpo nunca caber no corpo, revelando as inúmeras e frustradas dietas, as cirurgias plásticas frequentes e os tratamentos mágicos de rejuvenescimento.
O controle da alimentação orientado pela regulação cientifica e pelos interesses da Indústria aumenta a cada dia. É o principal responsável pela perda de autonomia alimentar e mal-estar em relação ao corpo, pois visa à construção de uma beleza idealizada, podendo levar ao adoecimento.
Vivemos sob a égide da Mentalidade de dieta. Esse é um termo da psicanalista inglesa, Susie Orbach, para denunciar o aumento do controle social da alimentação, por meio das dietas, para alcançar um corpo idealizado. A mentalidade de dieta é produzida socialmente, está internalizada em nós e regula as relações do homem com a comida e com o corpo. É a principal razão pelo crescente aumento dos distúrbios alimentares, pois causa perda de autonomia alimentar – esse é o cerne comum a esses distúrbios.
Os tratamentos convencionais para os problemas alimentares são baseados no controle da alimentação do paciente, visam à contenção dos sintomas e à construção de um corpo idealizado. Não reconhecem que é exatamente desse problema que o paciente sofre. Tendem a reforçar o problema da perda de autonomia, já que reproduzem os mesmos meios e objetivos que fazem o paciente adoecer. E, muitas vezes, levam-no a um uso fóbico, religioso e rígido da alimentação, das rotinas e dos cuidados corporais.
Hoje é necessário um tratamento que promova a autonomia alimentar. Desconstruir a mentalidade de dieta e possibilitar a recuperação dos sinais vitais de fome, saciedade e prazer em comer permitem a conexão entre o comer e as emoções. Liberdade é poder escolher!
Luciana Saddi é psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SP), mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP e autora dos livros de ficção O amor leva a um liquidificador (Ed. Casa do Psicólogo) e Perpétuo Socorro (Ed. Jaboticaba). Assinou por mais de dois anos a coluna Fale com Ela na "Revista da Folha", do jornal Folha de São Paulo. Representante do Endangered Bodies no Brasil.
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