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Psicanalistas devem estar mais atentos às questões raciais de pacientes, defende estudo

A psicanálise pode ser entendida como o método terapêutico criado pelo médico Sigmund Freud (1856-1939) que consiste na interpretação, por um psicanalista, dos conteúdos inconscientes que vêm à tona por meio das palavras e ações de uma pessoa. Isso ocorre por meio da chamada “escuta psicanalítica”, realizada dentro de um consultório.

Uma pesquisa realizada no Instituto de Psicologia (IP) da USP mostra que, diante de um paciente negro, o psicanalista precisa levar em conta as questões das desigualdades raciais e sociais encontradas na sociedade brasileira. “O inconsciente não tem cor, mas somos marcados pelo modo como somos vistos pelas outras pessoas”, destaca a psicanalista Ana Paula Musatti Braga.

“Eu não acredito em raça no sentido biológico, mas acredito naquilo que a Lilia Schwarcz (professora do Departamento de Antropologia da USP) define como ‘segunda pele’: a pessoa sofre as consequências de quando entra em um lugar e é olhada de forma diferente, com as marcas de um passado de escravização de homens e mulheres negros. Isso passa pela cultura por vias subterrâneas, ou seja, de forma muito velada e inconsciente”, diz a psicanalista.

Ela percebeu isso ao realizar um trabalho em uma escola pública do bairro do Butantã, em São Paulo. Foi lá que ela conheceu Silvana, uma mulher negra e pobre, na casa dos 40 anos, mãe de nove filhos, estando três deles encarcerados. A psicanalista decidiu então fazer algumas entrevistas com ela, tomando-a como o caso clínico de sua pesquisa.

Ana Paula foi percebendo a questão do racismo e das desigualdades sociais através de várias falas de Silvana. Num desses encontros, por exemplo, Silvana relatou que certa vez estava com um dos filhos, de pele mais clara que a dela. Uma pessoa vê os dois e, ao deduzir que se trata da babá da criança, diz: “Nossa, seus patrões devem confiar muito em você pra deixar a criança assim sob os seus cuidados”. Quando Silvana responde que é a mãe do menino, a pessoa devolve: “Espero que não tenha sido o seu patrão que fez isso com você”.

“A questão aqui é refletir por que uma pessoa somente consegue vê-la nesse lugar de servidão ao outro: ou é a babá ou é aquela cujo corpo o patrão pode usufruir. Apesar das conquistas femininas atuais, a mulher negra ainda está colocada em um lugar de servidão”, explica a psicanalista. “Como cada pessoa vai singularmente construir sua própria subjetividade tendo essas marcas ao longo da vida? É preciso lembrar disso tudo quando atendemos pacientes negros. Caso contrário, não conseguiremos ouvir a singularidade que chega até nós.”

Virgínia Bicudo

Ana Paula menciona que há poucos trabalhos sobre mulheres negras e pobres nessa área. Ela lembra que uma das fundadoras da psicanálise no Brasil foi exatamente uma mulher negra: Virgínia Bicudo, autora da primeira tese de doutorado sobre as relações raciais no Brasil. “Poucas pessoas sabem que ela era negra. Isso mostra que está se perpetuando um silenciamento dessas mulheres”, diz.

De acordo com a pesquisadora, a psicanálise precisa caminhar junto com a história e a antropologia social. E nas sessões de psicanálise, ao ouvir uma mulher negra, o psicanalista deve considerar todo o apagamento da memória vivenciado pelo povo negro, a invisibilidade e o desaparecimento social, o genocídio e o encarceramento de jovens negros, heranças da articulação entre racismo e servidão. “Silvana tem três filhos encarcerados e isso deve ser levado em conta”, afirma a psicanalista.

Ana Paula utilizou também textos de blogs, músicas e depoimentos de pessoas negras sobre o preconceito racial. “Essas experiências podem abrir novas possibilidades de escuta para um psicanalista se dar conta de como a prática clínica precisa ser atualizada e atravessada por esta questão”, diz. Para a pesquisadora, o racismo não pode ficar como um problema apenas dos negros. “Nós todos temos de abrir os ouvidos e perguntar como isso atravessa todos nós”, ressalta.

Sensibilidade na escuta

A pesquisadora encontrou relatos de psicanalistas negros atendendo pacientes negros. Mas a questão não é se os pacientes negros chegam ou não ao consultório, mas sim se o psicanalista os ouve. “Eles relatam que as questões raciais nunca foram ouvidas pelos psicanalistas brancos. Provavelmente o paciente falou sobre isso, mas não foi escutado com sensibilidade suficiente e o psicanalista não percebeu a importância das questões raciais no dia a dia do paciente.”

A psicanalista também encontrou depoimentos de mulheres negras citando um certo mal-estar que sentem sobre o corpo: como não atendem a um determinado padrão de beleza, elas muitas vezes sofrem porque o padrão delas não é aquele encontrado nas capas de revistas. “Eu acredito que o mal-estar pode ser, além deste, portar um corpo que não é que não seja atraente. Ele é exatamente o oposto: é um corpo visto como muito atraente, onde tudo seria possível.  A imagem da mulata, cheia de erotismo e sensualidade, representa isso muito bem. Deve ser muito desconfortável e complicado ter um corpo que produz no outro fantasias de um prazer inimaginável e desregrado”, finaliza.

A tese de doutorado Os muitos nomes de Silvana: contribuições clínico-políticas da psicanálise sobre mulheres negras foi defendida em fevereiro de 2016, sob a orientação da professora Miriam Debieux Rosa.

Valéria Dias
Jornal da USP