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Contardo Calligaris: "A política brasileira está muito difícil para a ficção"

Nascido em Milão em 1948 e radicado no Brasil por períodos mais ou menos longos desde a segunda metade dos anos 1980, o psicanalista Contardo Calligaris foi se transformando de nome de referência para um círculo intelectual restrito, o da psicanálise lacaniana, em popular cronista da sociedade brasileira que adotou. Colunista da Folha de S.Paulo, onde começou a escrever em 1999, Calligaris, que morou em Porto Alegre nos anos 1990, publica uma vez por semana textos que refletem sobre o narcisismo como elemento fundamental da psique contemporânea, sobre as similitudes entre o Brasil e sua Itália natal, sobre cinema e também sobre literatura – tema que ele deve debater em Porto Alegre na próxima sexta-feira, 3 de junho, como parte da programação do 9º Fórum Instituto Unimed.

O evento tem como tema Desafios Culturais e Éticos em Tempos de Crise e contará, na abertura, com a participação do diretor do Instituto Unimed-RS, Alcides Mandelli Stumpf, do presidente da Unimed-RS, Nilson Luiz May, e da senadora Ana Amélia Lemos (PP). A programação começa às 9h e tem entrada franca (veja mais detalhes no fim deste texto).

No painel para o qual foi convidado, mediado por Juremir Machado da Silva, Calligaris deve trocar ideias com o biógrafo Ruy Castro e com o escritor e médico Nilson Luiz May, mas garante não ter ainda noção de que rumo o papo deve tomar.

– Não sei como esboçar qualquer abordagem com tanta antecedência – comentou, em entrevista concedida a Zero Hora via skype diretamente de Nova York, cidade em que passa parte do ano.

Calligaris se diz traído pelo rumo dos últimos acontecimentos envolvendo projetos de esquerda no país. Também comentou a sempre mencionada aproximação entre a Operação Lava-Jato e a Operação Mãos Limpas, da Itália, modelo declarado da primeira. E falou também de uma realidade tão estranha e acelerada que dificulta sua apreensão por qualquer ficção.

O que o senhor pretende apresentar na mesa sobre literatura do Fórum Unimed, na Capital?
Não tenho a menor ideia, não sei ainda como esboçar qualquer abordagem com tanta antecedência, e não estou brincando. Ainda mais em um momento em que não se sabe o que vai acontecer amanhã, a menos que eu ficasse tecendo relações entre literatura, vida social e companhia, o que não é o meu caso, até porque não acredito em verdades eternas. Me parece que a nossa atualidade não encoraja a responder a essa pergunta, não faço ideia do que vai ter acontecido na sexta-feira pela manhã, ou quem será preso e mandado para Curitiba naquele dia.

Em artigo recente, o professor Luis Augusto Fischer comentou que havia uma notável ausência da política e das figuras do poder político na produção ficcional brasileira. O Brasil anda complicado demais para a ficção?
É uma reflexão interessante, porque isso é verdade para a literatura e tanto mais para o cinema, até porque o cinema tem como vocação responder com mais rapidez à tarefa de ficcionalizar a realidade. E na verdade o cinema não parece nem estar tentando. Conheci alguém que estava escrevendo um projeto para um seriado a ser produzido no Brasil sobre uma figura clássica, talvez especificamente da política brasileira, e que tinha por título O Marqueteiro. E quando estava no meio do projeto aconteceu aquilo que se viu com o João Santana, e o que a imprensa revelou do caso tornou o projeto totalmente caduco, pelo menos no momento. A política brasileira está muito difícil para a ficção. Quando você vê a primeira temporada de House of Cards (seriado da Netflix), está totalmente aquém do tipo de trama que a política brasileira dos últimos dois ou três anos permitiria.

As pessoas têm compartilhado nas redes sociais essa impressão, a de estar vivendo numa suprarrealidade ou num simulacro do que veem na ficção televisiva, dada a sucessão de reviravoltas.
Mas isso não é uma estranheza. Aristóteles já dizia isso: o que é importante não é ser fiel à realidade, é ser verossímil, e muitas vezes ser verossímil significa baixar o tom. Na minha própria experiência, a maior parte das coisas que escrevo para a TV (para o seriado Psi) é adaptada de situações e histórias reais vividas por mim, fazendo aquele trabalho clássico de disfarçar a identidade dos personagens ou de cruzar duas ou mais histórias, mas muito frequentemente deparo com a observação de que o que estou apresentando ali seria uma "roteirada", ou seja, um desdobramento narrativo que você propõe por pura necessidade interna no roteiro, mas que não teria nenhuma verossimilhança. E o interessante é que, em geral, o que apontam como "roteirada" é o que aconteceu de fato, com poucas interferências ou invenções. Mas a observação é justa: quando a gente escreve, tem de ser verossímil, o que muitas vezes significa ser menos ousado do que a realidade. 

A realidade tem sido ousada no Brasil?
Claro. Imagina alguém que escrevesse a história do governo Temer e sete dias depois já estivesse contando a queda de Romero Jucá. No mínimo, no mínimo, alguém diria: "Meu, dá uma passagem de tempo maior nesse roteiro antes de acontecer isso". A narrativa não está à altura. Talvez seja cedo. Que eu saiba, ninguém está escrevendo nada com esse material. Você ouviu falar de alguém trabalhando nisso?

José Padilha comentou que pretendia produzir uma série na Netflix sobre a Lava-Jato.
É verdade, agora me lembro de ter lido isso. Mas só "a Lava-Jato" é que nem Os 10 Mandamentos: tem de ter vários filmes sucessivos. A Lava-Jato é um tema extraordinário. Sabe o que é um problema para mim? Eu, no fundo, por tradição, por ter formado meu gosto na narrativa cinematográfica e televisiva do pós-Guerra e mesmo na literatura, é muito difícil para mim avançar numa história sem que haja um personagem legal. Não preciso de um grande herói, não preciso de Batman, de Superman, pelo contrário, aquilo meio que me entedia. Mas é uma narrativa curiosa quando não tem ninguém que seja positivo. No histórico recente da política brasileira, existe um herói positivo possível? Adoraria que existisse, mas não tenho certeza.

O cientista político Bolívar Lamounier diz que houve o ocaso de uma geração com um projeto para o país, como Brizola, Ulysses Guimarães e Mario Covas, talvez o Lula como único remanescente, seguido pela geração atual de políticos sem grande carisma.
Eu tenho muita dificuldade de colocar o próprio Lula nisso, principalmente neste momento. Porque pessoalmente eu estou tão puto, tão puto com a minha própria família, que é a esquerda, que sabe... Tem aquela frase que diz que não há anticomunista pior que um ex-comunista, temos uma série de exemplos disso. Mas eu não sou um ex-comunista porque mudei de ideia. Quando você perguntava para um cara como (Jorge) Semprún (escritor, intelectual e político espanhol) por que ele havia virado um anticomunista ferrenho, não era porque ele havia mudado de ideia, mas porque se sentia traído pela esquerda, traído nos ideais que o fizeram tomar parte nessa esquerda. E a minha sensação em relação ao PT em particular é exatamente essa. Estou puto com o PT porque me colocou na posição de certa forma ter de torcer pelas figuras fisiológicas horrorosas que compõem esse governo Temer. Eu me sinto muito mais puto com o PT do que com o governo Temer. A sensação é de traição, e que vem de longe, vem de uma política ideológica que traiu suas bases, uma política retrógrada, sempre fisiológica, interessada nos piores apoios, em vez de estar interessada nas ideias de quem forma a base da esquerda. Eu estou tão puto que nem quero começar a falar nisso.

Muito se fala da Operação Mãos Limpas, em sua Itália natal, como um modelo para a Lava-Jato, mas automaticamente essa menção é temperada pela lembrança da ascensão de Berlusconi. O senhor vê conexões entre elas?
Eu não sei bem quem tem interesse em divulgar essa ideia. Berlusconi apareceu no firmamento político italiano depois da Operação Mãos Limpas por um período brevíssimo. Depois da Mãos Limpas, tivemos dois governos sucessivos de centro-esquerda que duraram bastante tempo. Depois disso tudo, estou falando de quatro a seis anos, foi que realmente Berlusconi penetrou na política italiana. O que aconteceu, e que decretou o fim da Operação Mãos Limpas, o que talvez marque seu limite, e venha a marcar também o limite da Lava-Jato no Brasil, é que a um dado momento a Mani Pulite alcançou a pequena corrupção italiana, sem a qual talvez a grande não existisse, ou vice-versa. E quando começou a alcançar essa pequena corrupção, do profissional liberal que não declara, do restaurante que não faz notas, ou que enfia um dinheiro no bolso do pessoal da receita para que passe ao lado, enfim, quando essa corrupção foi alcançada pela Mani Pulite, a operação perdeu o apoio popular. Ou seja: os italianos queriam que a política fosse limpa, mas eles próprios não queriam viver em um universo escandinavo. Queriam poder continuar sendo medianamente corruptos. Acho que os brasileiros provavelmente reagiriam da mesma forma, os brasileiros indignados pelo que acontece nos financiamentos de campanha, pela venda de votos e pautas do governo por baixo da mesa, bom, todo mundo está contra isso. Mas no dia em que formos acabar com os despachantes, com a criação artificial para poder comprar as pequenas facilidades que R$ 200 podem comprar, aí é outra história. Conheço pessoas que estavam na Paulista gritando a favor do impeachment de Dilma Rousseff, mas ao mesmo tempo, no mesmo dia, foram numa pretensa autoescola, fazer um pretenso exame que era filmado por uma pretensa câmera para terem uma pretensa carteira de motorista sem precisar passar por exame nenhum. Então, esse paradoxo um dia chega no dente de uma real Operação Lava-Jato, e quando chegar, vai ter pessoas que preferirão continuar pagando R$ 300, R$ 400, para ter um privilégio ridículo qualquer.

Carlos André Moreira
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