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Da Tragédia à Farsa — Joel Birman

Joel Birman  (psiquiatra e psicoterapeuta, autor de vários livros no Brasil e na França sobre psicanálise, professor de Psicologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro — UFRJ e do Instituto de Medicina Social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro — UERJ. Está construindo, no Collège International de Philosophie, em Paris, uma linha de pesquisa interdisciplinar em psicanálise e filosofia)

Quando as manifestações para o impedimento por crime de responsabilidade da Presidenta Dilma Rousseff se iniciaram de forma barulhenta e ostensiva, orquestradas e convocadas ativamente que foram de forma vergonhosa pelas redes de televisão, ficou claro não apenas que um golpe midiático-jurídico-parlamentar estava em marcha acelerada, como também que a direita e a extrema direita saíram definitivamente do armário. Se anteriormente, depois da anistia e da Constituinte, as pessoas no Brasil tinham vergonha de se apresentarem com tais colorações políticas, pois seriam identificadas com o ideário político da ditadura e contrárias assim ao Estado Democrático de Direito, com as eleições de 2014 as máscaras caíram por terra, na medida em que foi a democracia enquanto tal que foi colocada radicalmente em questão. Não apenas porque segmentos sociais significativos dos manifestantes demandaram o retorno dos militares ao poder político, como também passaram principalmente a naturalizar a oposição ao resultado das urnas, como se assim não estivessem enterrando a sociedade democrática que foi trabalhosamente constituída no Brasil nos últimos anos. Tudo isso desembocou de forma vergonhosa na votação realizada na Câmara dos Deputados, na qual os porta-vozes e ratazanas da Ditadura militar se pronunciaram de forma carnavalesca, cobertos com as cores da bandeira nacional, aludindo inclusive ao torturador de Dilma como se fosse um herói da brasilidade, sem qualquer escrúpulo e caráter como o personagem Macunaíma de Mário de Andrade, de forma que o país ficou caracterizado para qualquer inglês ver como uma Zorra total, para inscrevermos o disparador parlamentar do golpe de Estado no roteiro humorístico da Rede Globo de Televisão, que foi inquestionavelmente um dos artífices decisivos desse golpe na jovem democracia brasileira. O que se passou no Senado, em seguida, somente ampliou estas marcas decididamente anti-democráticas do golpe em pauta, que foi plenamente reconhecido por veículos importantes da mídia internacional, para a vergonha da mídia brasileira.

Contudo, o golpe em questão atinge não apenas a ordem democrática, ao jogar na lata de lixo da história a decisão da maioria dos eleitores que elegeram Dilma Rousseff, mas também uma série de pautas e de programas sociais que foram construídos nos últimos anos, desde a administração Lula. Estamos já assistindo a suspensão de todos os programas sociais que foram desenvolvidos anteriormente, assim como as transformações nas pautas do trabalho, da previdência social e dos marcos regulatórios das relações do público e do privado, a começar pela exploração do pré-sal, em nome dos imperativos da austeridade e do ajuste fiscal, para azeitar o projeto neoliberal. Além disso, todas as pautas referentes aos movimentos Gays e transexuais foram atingidos, de forma que isso é apenas a ponta do iceberg que atinge brutalmente a ética da diferença no Brasil e que interessa fundamentalmente a psicanalise. É neste sentido que esta só pode existir efetivamente numa sociedade democrática, de forma que o projeto psicanalítico foi radicalmente afetado pelo dito golpe. Contudo, o governo Temer não tem a legitimidade das urnas para desmontar os programas sociais e o ideário político que foram votados pelas urnas e por isso mesmo é um governo literalmente usurpador, na medida em que realiza a cassação em ato da soberania popular materializada pelo voto dos cidadãos brasileiros. Em decorrência disso, o desdobramento final nefasto do golpe de Estado impetrado foi a sua incidência na expectativa das classes populares brasileiras pela justiça e pela crença de que seria possível pela ação democrática diminuir as desigualdades sociais no país, retirando das elites uma parte de seus privilégios ancestrais na tradição brasileira. Portanto, foi a esperança dos brasileiros que foi visceralmente destruída pelos golpistas e pelos serviçais do mercado, retomando as linhas de força da ditadura brasileira e contra a ordem democrática, de forma que como disse Marx se a história acontece no registro do trágico, ela se repete como farsa, pois o golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016 é a repetição farsesca do golpe militar de 1964.