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Literatura de autistas

Marina Bialer

Doutora em Recherches en Psychopathologie et Psychanalyse pela Université Paris 7 - Denis Diderot.
Doutora em Psicologia Clínica pela Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

Estilos da Clínica (Volume 19 / 3 - 2014)


 
A literatura de autistas fornece indícios das condições nas quais é possível a saída do fechamento autístico. Há o testemunho da vontade de muitos autistas de romper com as barreiras de autoproteção, desde que tais condições sejam respeitadas, o que fornece indícios das possibilidades terapêuticas e dos caminhos viáveis para o tratamento.

 

Introdução

Os estudos do autismo no campo psicanalítico têm predominantemente focalizado o autista em seu fechamento autístico, caracterizado por movimentos estereotipados, pela ausência ou presença rudimentar de comunicação com os outros e pela necessidade de manutenção de um mundo imutável sob controle. Toda uma importante clínica se construiu em torno dos autistas não verbais, sendo que a psicanálise elaborou um importante arcabouço teórico-clínico para o diagnóstico e tratamento desses autistas. Há, todavia, além dos autistas que se enquadram no diagnóstico tradicional – kanneriano – várias outras manifestações nuançadas de autismo que atualmente são enquadradas no diagnóstico de espectro autístico.

Uma grande parcela dos autistas, principalmente os de alto-funcionamento, não foi diagnosticada durante a infância por não apresentarem a sintomatologia clássica de autismo e suas dificuldades foram rotuladas como mau comportamento, falta de vontade, bizarrice social, burrice para coisas abstratas, mania de ordem e comportamentos obsessivos. Além da expansão dos critérios diagnósticos que permitiram a integração de sintomas nuançados no mesmo espectro autístico, o campo do estudo dos autismos tem sido impactado pelo fenômeno de vários autistas que começaram a produzir literatura, blogs, textos, vídeos, entre outros, os quais relatavam seu funcionamento psíquico e suas histórias de vida, sendo que tais produções se tornaram um importante material clínico para expandir a compreensão que temos do autismo. Além dos autistas de alto-funcionamento, a literatura autobiográfica abarca vários autistas diagnosticados de baixo-funcionamento, não verbais-orais, que puderam sair do encapsulamento e da tradicional sintomatologia kanneriana e escreveram textos nos quais retratam sua vida psíquica, outrora inacessível às outras pessoas.

Pensando o autismo em termos de espectro e utilizando os ensinamentos que podemos retirar da literatura produzida por autistas, podemos aprofundar nosso estudo das condições necessárias para a construção de soluções subjetivas singulares, que permitem o abandono, parcial ou total, do mundo autístico, de um fechamento em si mesmo ou de uma relação exclusiva com objetos ou com um outro, em direção a uma abertura ao mundo e ao laço social.

A importância de se escutar os testemunhos de autistas capazes de expressar sua posição subjetiva é uma via para abordar com mais precisão a estrutura autística. A partir do contato com a literatura produzida por esses autistas, é possível observar as condições necessárias para a construção de soluções singulares, de acordo com as nuances da estrutura subjetiva do autismo. O abandono, parcial ou total, do mundo autístico, de um fechamento em si mesmo ou de uma relação exclusiva com objetos ou com um outro, pode ser seguido de uma abertura em direção ao laço social. Embora somente uma pequena minoria dos autistas obtenha tal funcionamento elaborado, Maleval (2009) ressalta a importância desses ensinamentos para balizar o trabalho e a clínica com autistas em estados de fechamento ou encapsulamento, e dos quais é tão difícil se ter acesso ao funcionamento psíquico.

 

A escrita autobiográfica no autismo: um fenômeno coletivo

Há várias histórias autobiográficas de autistas, muitas escritas por autistas que se referem à infância e às inúmeras dificuldades que enfrentavam em seu dia a dia, na escola ou na família, sendo muitas vezes excluídos, considerados retardados mentais, deixados de lado, ou sofrendo agressões, bullying de outros colegas e pessoas que, sem intenção, lhe eram invasivas e agressivas.

Nesse contexto, o material autobiográfico é formulado pelos autores com o objetivo de ensinar às outras pessoas um pouco mais sobre o mundo de isolamento autístico, compartilhar as singularidades de seu funcionamento psíquico e no que isso embasa maneiras diferentes de experienciar a vida. Se, por um lado, nessas histórias, é premente um intenso sofrimento, gerado no desencontro entre o "mundo autístico" e o mundo compartilhado pelas outras pessoas, por outro, há inúmeros relatos de encontros inesperados, de relações de amizade que originam experiências subjetivamente mutativas, o que também indica aberturas a percursos criativos e a soluções inovadoras para lidar com as particularidades da sintomatologia autística, indo muito além da sintomatologia kanneriana, e para além dela, relatando suas maneiras de viver e inventar singularmente sua vida.

O livro de Grandin (2011) pode ser esclarecedor para analisarmos a importância do fenômeno de autobiografias de autistas enquanto uma escrita coletiva, escrita por diversas mãos, que objetiva um compartilhamento de experiências e o estabelecimento de um holding emocional que impulsiona o trabalho elaborativo subjetivo. Temple Grandin, a autista de alto-funcionamento que mais tem produções escritas direcionadas a autistas, familiares e outros interessados no campo, realiza seu estudo do autismo tendo como fonte de informações suas experiências pessoais, histórias compartilhadas por outros autistas, produções literárias de outros autistas e, também, estudos científicos. Já no título, que poderia ser traduzido por "Diferente, não menos" ou "Diferente, não pior", enfatiza-se que o autista é diferente, e nada além disso, e que o livro é uma coletânea de histórias e relatos de pessoas no espectro autístico.

Grandin procura realizar uma análise e uma descrição do modo como os autistas pensam, sentem e percebem de maneira diferente, apontando, todavia, a singularidade irredutível de cada sujeito que não pode ser reduzido a seu autismo. Seu livro evidencia o trabalho de Grandin de escuta e de escrita das histórias de outros autistas, sinalizando a importância da construção conjunta de um conhecimento sobre o autismo e da construção de uma rede de amparo emocional que permite aos autistas e aos familiares sonharem novamente com um futuro, para além de uma sintomatologia, por vezes extremamente intensa. Por meio dessa troca de experiências que procura "encorajar pessoas no espectro a serem únicas", Grandin (2011, p. 312) procura auxiliar cada autista a encontrar um sentido singular para sua vida, por meio da obtenção da autonomia, da independência, do sucesso profissional, de valores éticos e de um percurso significativo singular para sua vida.

Grandin relata querer que sua coletânea de relatos autobiográficos seja, nesse âmbito, uma fonte de esperança para que autistas de todas as faixas etárias desenvolvam suas potencialidades, muitas das quais podem estar camufladas por uma sintomatologia kanneriana, enfatizando que qualquer pessoa pertencente ao espectro autístico pode desenvolver suas potencialidades, tentar remediar e tratar suas dificuldades em qualquer momento da vida. É unânime, nos relatos coletados por Grandin, a importância da leitura das histórias de outros autistas, a qual embasou a possibilidade de adquirir novos insights sobre si mesma a partir da experiência singular de outros autistas.

Pretendo agora abordar os efeitos da escrita e da publicação da literatura enfatizando, principalmente, a literatura escrita pelos autores autistas Tito Mukhopadhyay, Donna Williams e Birger Sellin, enquanto exemplificações desse fenômeno coletivo da escrita e da publicação no campo do autismo.

 

O conhecimento alicerçado no estudo dos próprios sintomas

A leitura dos textos autobiográficos evidencia um importante trabalho de construção de conhecimento sobre a sintomatologia autística, alicerçando insights sobre a singularidade do seu funcionamento psíquico. Vários textos autobiográficos se concretizam em um autoestudo dos sintomas autísticos, que pauta um trabalho subjetivo que tem efeitos terapêuticos sobre cada autista, em sua singularidade, assim como sobre o leitor.

Na literatura autobiográfica de autistas prevalece uma compreensão do autismo não como uma patologia da qual o indivíduo seria portador e cuja retirada lhe devolveria à normalidade; ao contrário, o autismo é vivido enquanto condição existencial estrutural. O autismo é um posicionamento subjetivo, é um modo de ser.

O autismo não é algo que uma pessoa tem, ou uma "concha" na qual uma pessoa está aprisionada. Não há uma criança normal escondida atrás do autismo. O autismo é uma maneira de ser. Ele é invasivo; ele atinge toda a experiência, toda sensação, percepção, pensamento, emoção, todo aspecto da vida. Não é possível separar o autismo da pessoa... e se isto fosse possível, a pessoa que restaria não seria a mesma que existia anteriormente. (Sinclair, 1993, § 5 , tradução nossa)

Nesse mesmo sentido, para Tito Mukhopadhyay (2011a), seu autismo não é uma doença, não é algo a ser curado ou retirado, mas é uma modalidade de experienciar a si mesmo e o mundo. Mukhopadhyay salienta a importância de janelas abertas para a sua mente pelo fato de ser autista: escutar e inventar histórias singulares e relacionar-se com os objetos, as cores, as sombras e as vozes das pessoas de uma maneira inventiva. Ao mesmo tempo em que relata a importância do compartilhamento de suas singularidades psíquicas com seus leitores. A escrita de Mukhopadhyay sobre si mesmo o impulsiona a uma compreensão de si mesmo e de uma modalidade autoterapêutica de expressão que lhe permite colocar em palavras o que vivencia e traduzir a lógica de seu autismo. Podemos apontar alguns importantes aspectos reiterados ao longo da sua obra: seus comportamentos bizarros têm um sentido pessoal, seus movimentos motores desorganizados e autônomos estão em conexão com um sentimento de desamparo ou com a falta de recursos para se expressar de outra forma, sendo que ele se sente preso, incapaz de se apropriar das ações do seu corpo, em um mundo vivido muitas vezes como caótico.

Donna Williams (1992) também ressalta a importância de seus gestos e rituais para garantir sua sensação de segurança, assim como para aliviar sua angústia, ressaltando um intenso sofrimento com a solidão extrema e uma vontade de se comunicar com os outros, ao mesmo tempo em que ressalta a necessidade de que tal comunicação seja feita sob certas condições e, preferencialmente, de maneira indireta e alusiva. Em suas autobiografias, ela descreve suas interpretações para alguns de seus comportamentos. A necessidade de organizar e categorizar objetos lhe permitia visualizar as relações entre eles, assim como abria uma possibilidade para que, com isso, ela pudesse ter o sentimento de, no futuro, poder compreender as relações no mundo e encontrar seu lugar nele. Já as estereotipias lhe davam um sentimento de continuidade e a segurança de que as coisas permaneceriam no mesmo lugar, mesmo em uma situação afetivamente impactante. Acender e apagar a luz rapidamente assim como piscar compulsivamente tinham a função de fracionar uma experiência, reduzindo o impacto ou a velocidade da vivência. Além disso, o controle sobre a luz permitia um sentimento de segurança que ela não conseguia obter com contatos físicos.

As estereotipias, como derrubar objetos ou deixá-los cair de maneira repetitiva traduzia para Williams o sentimento de liberdade, de expressar suas emoções sem medo. Nesse mesmo sentido, seus pulos repetitivos produziam o sentimento de liberdade, nesse caso, correlativo a uma sensação de prazer pelo ritmo. A intensidade do movimento deveria ser proporcional à tensão que ela sentia precisar aliviar, ao medo que ela devia combater. Quando nenhum desses movimentos ritmados bastava para lhe acalmar, ela batia a cabeça contra o muro para combater a tensão e provocar um som ritmado, um "barulho surdo" (Williams, 1992, p. 304) em sua cabeça.

A fixação do olhar em objetos podia funcionar como um procedimento de autohipnose para se acalmar e relaxar. Alguns desses objetos eram, para Williams, ligados a sensações que lhe remetiam a algumas pessoas presentes na sua vida, sendo que o contato com o objeto produzia o sentimento que tinha com a pessoa correspondente.

O balanceio repetitivo é descrito como uma preparação necessária para poder se jogar em direção ao mundo. Há o sentimento da existência de um "buraco negro" (1992, p. 303) entre ela e o mundo, sendo preciso dar um salto à grande distância para alcançá-lo. Assim como existe sua vontade de realizar esse salto e a importância da preparação pessoal, há o temor de que outras pessoas queiram obrigá-la a saltar. Já a fixação do olhar no vazio, ou através dos objetos, assim como o movimento de girar em torno de si mesma são descritos como tentativas de diminuir a tensão em situações extremamente difíceis, nas quais Williams não encontrava um meio para se expressar ou sentir o que vivia, havendo tamanha perda de esperança, que beirava o sentimento de "suicídio mental" (1992, p. 305).

Nas várias autobiografias de autistas consultadas, esse escrever sobre a própria sintomatologia demonstrou ser um importante auxílio para romper a solidão e evitar o suicídio mental que Williams descreve, e que está presente nos testemunhos de vários autistas. Nesse âmbito, podemos destacar o desdobramento desse estudo sintomatológico na vertente de uma modalidade de insight subjetivo que impulsiona tanto a construção de um saber singular sobre o próprio funcionamento psíquico quanto a extensão de pseudópodes em direção a outras pessoas por meio do compartilhamento da própria experiência psíquica.

 

A escrita ancorando o trabalho de elaboração psíquica

É interessante ressaltarmos o impacto transformador da escrita autobiográfica na vida de todos os autores autistas estudados, fato ainda mais etonante quando enfocamos os autistas que (quase) não podem falar, mas podem se expressar fluentemente pela escrita, como Tito Mukhopadhyay e Birger Sellin.

Entre seus dois e dezoito anos, Birger Sellin permaneceu em um mutismo total, tendo expressado uma única frase durante todos esses anos. Suas manifestações autísticas kannerianas camuflavam uma intensa vida psíquica, que só se tornou acessível quando ele pôde começar a escrever. Ao começar a escrever, Sellin descreve esse período de mutismo autístico como um não mundo e não pessoa, correlativos a sua vivência de desvitalização maciça. Embora estivesse intensamente ligado a tudo o que ocorria a sua volta, exisita uma dimensão vital que havia desaparecido, a qual lhe permitia sentir a possibilidade de estabelecer um vínculo, como se todos entrassem em uma zona de mortos, assim como ele próprio. Para Sellin, escrever lhe permitiu deixar fluir "o fluxo de pensamentos", "encontrar as palavras" e atingir "um nível de estar-ser que faz saltar as fronteiras" (1998, p. 92), enquanto parar de escrever significava cair novamente na solidão infindável, abismal. Nesse contexto, a escrita surgiu como sua invenção autoterapêutica para tratar uma invasão de gozo e não cair no abismo da solidão sem fim. É escrevendo que Sellin tem esperança de que a luz entre na escuridão e de que ele possa compartilhar seus sofrimentos e sair dessa solidão esmagadora.

Em seus dois livros autobiográficos (1995; 1998) há uma oscilação permanente entre o poder se comunicar pela escrita e o bloqueio total, ambos emergindo de si mesmo. Nos momentos em que ele não consegue escrever, apesar da intensa vontade de encontrar os caminhos para se expressar, Sellin afirma ser tomado por uma solidão que o impede de se levantar de seu "caixão", como se houvesse dentro dele um muro "rude e confuso" ou "alguma coisa que obstrui com veemência o caminho em direção ao exterior" (1998, p. 96). Essas resistências interiores são descritas como fontes de energia negativa-negadora de vida, oriundas dele mesmo, e que lhe exige o apoio de outro humano, sem o qual lhe é impossível superar essas poderosas forças que lhe tornam um caótico "eterno gritador" (Sellin, 1998, p. 170). As crises de gritos podem ser remetidas a intensas invasões de gozo, não modalizadas pelo tratamento significante. Com exceção dos gritos e da agitação, Sellin refere-se a uma ausência de outras estratégias defensivas que lhe permitam "dominar a angústia" (1998, p. 113) que vivencia em situações cotidianas que lhe produzem medo. O medo que o avassala é "um medo ladrão da paz estrangeiro à natureza", um "medo contínuo incessante" que emerge como lava da profundeza de um vulcão e que lhe invade com "uma fabulosa e louca potência" (Sellin, 1998, p. 80), causando-lhe um terrível e imenso sofrimento e arrancando-lhe a paz e a tranquilidade. Nessas situações, Sellin é incapaz de controlar os gritos, as estereotipias e os comportamentos bizarros. Em muitas crises de explosão de gritos surgem comportamentos autoagressivos e agressivos, e Sellin não consegue mais escrever, sendo tomado por uma agitação intensa na qual os "pensamentos" loucos trabalham como "selvagens" e "as palavras se deslocam" tornando tudo instável e caótico, pois "tudo se desagrega em um modo hiper acelerado" (1998, p. 84).

A invasão de uma intensa agitação produz um nervosismo tão violento e destruidor que desemboca em "gritos morto-humanos" (Sellin, 1998, p. 132), dos qualis emerge a voz, destacada do significante, sendo, aliás, marcante no campo das autobiografias de autistas, que descrevem a dimensão invasora do gozo, em decorrência dele não poder ser encarnado na dimensão da letra. Tito Mukhopadhyay, por exemplo, aponta que nas suas crises, sua voz "podia gritar, mas não falar" (2011a, p. 42). Em suas crises de agitação, ele perdia todo o controle de sua voz, se perguntando quando o grito ia parar. Mukhopadhyay distingue ter uma mente pensante, sem voz, e a voz que nascia somente desconectada da mente pensante, surgindo somente quando ele ria ou gritava. Havia gritos que Mukhopadhyay afirmava serem tão intensos que sua existência se restringia àquele grito, cujo som dissolvia seu ambiente e seu corpo. Ele era o grito. Esse grito, sem controle algum, surgia em momentos de pânico e Mukhopadhyay só conseguia parar após total exaustão.

Mukhopadhyay descreve essa dimensão da voz como uma fonte de energia que só parava de funcionar quando acabasse todo o reservatório, e voltava a funcionar quando recarregada. Quando a voz era emitida nesse modo de funcionamento, ele perdia todo o controle sobre ela e ninguém mais podia pará-la até que a energia acabasse totalmente de sair. Ao contrário dessa voz que emergia no grito gutural, durante as crises de invasão do gozo, Mukhopadhyay relata a existência de uma voz silenciosa, enquanto objeto pulsional retido e não colocado no campo da linguagem do Outro. A voz retida de Mukhopadhyay podia ser refletida em um espelho e por meio desse espelho ele conseguia ter acesso ao pensamento e à emoção. A retenção do objeto voz no autismo e a necessidade de um apoio para que ela possa ser expulsa pode ser evidenciada na descrição de Mukhopadhyay sobre a importância dos métodos de facilitação que permitem a ele começar a falar equivalendo à abertura de uma "porta da fala" (2011c, p.121) em sua garganta.

Para abrir a porta da garganta, muitos autistas relatam precisar do apoio de outro ser, dotado de capacidades dinâmicas. Nesse sentido, quando tenta descobrir modos de sair do encapsulamento autístico, Sellin salienta que uma das soluções lhe parece ser "uma ajuda exterior" que lhe permite reencontrar a origem de uma vitalidade, de uma "existência psíquica" capaz de iniciar esse "movimento essencial" (1998, p. 39) que lhe é inacessível sem apoio externo. Ele precisava, quase que sistematicamente, do apoio de outro humano, oferecendo um holding (Sellin, 1995, p. 75) a seu corpo, um suporte para que ele se apropriasse de sua mão e de seu braço para poder escrever no computador. A pessoa que lhe auxiliava era, primordialmente, sua mãe, mas ele podia escrever com inúmeras outras pessoas, desde que fossem pessoas familiares e tranquilas. Algumas palavras e frases podiam ser escritas sem apoio, mas era extremamente sofrido e exigia uma dose extra de esforço psíquico. Sellin ressalta sua busca pelo apoio de alguém afetivo, familiar, com um saber e uma capacidade de compreender as nuances de seus comportamentos e de seu funcionamento, lhe protegendo, sevindo de "ponto de apoio" (1998, p. 66). A importância do apoio desse duplo autístico, esse outro semelhante que lhe serve de apoio, é correlativo à possibilidade de uma localização do gozo, compensatória da falta de ancoragem de alíngua no corpo no autismo, sendo uma das condições necessárias para que muitos autistas se apropriem do próprio corpo e se expressem pela escrita.

Na escrita de Sellin há a dimensão da linguagem como um instrumento para estender seus pseudópodes em direção aos outros, podendo sair parcialmente do isolamento autístico e se comunicar com outros humanos, e há a dimensão da linguagem como modalização do gozo, sendo que o próprio Sellin ressalta o poder curativo da escrita, permitindo que uma dimensão energética – que pode ser remetida ao gozo – excessiva encontre uma saída de seu corpo.

Em seus intensos conflitos intrapsíquicos, em suas tentativas de escrever e em sua dificuldade de suportar as intensas invasões de ansiedade e agitação, é essencial para Sellin sua intensa vontade de se comunicar com as pessoas que lhe são queridas, inclusive alguns de seus leitores. O amor dos outros e a interação com pessoas gentis, calmas e respeitosas de sua humanidade são descritos como a possibilidade de respirar para fora do seu isolamento e da prisão autísticos e germinar amor dentro de seu coração, pois "a gentileza e o amor são uma arma eficaz contra o autismo enervante", tendo poderes terapêuticos de um eficaz "remédio íntimo" (Sellin, 1998, p. 16). Escrever é, para Sellin, a oportunidade de se liberar parcialmente, de se comunicar, de contar seu sofrimento, alguns por quês de seus comportamentos incontroláveis. Nesse âmbito, podemos enfatizar a importância da escrita dos autistas como um pedido para outro humano oferecer um holding nas crises que escapam do campo do significante.

 

Conclusão

A literatura autobiográfica é um importante meio de expressão de vários autistas, mesmo daqueles em um quadro de mutismo autístico, que sem o intermédio da escrita não podiam previamente se abrir, muitos sendo considerados débeis mentais. Desses vários autistas surge o que Sellin descreve como uma polifonia sobre "a dor de uma solidão", "de uma angústia" e "de uma esperança" (1998, p. 41).

Os livros escritos por autistas são retratos de suas lutas para se liberar do isolamento autístico glacial e de suas diversas estratégias inventadas que lhe permitem um tratamento do gozo invasivo (com uma eficácia relativa, mas que permite que mantenham seus pseudópodes cada vez mais estendidos em direção aos outros). Escrever é a oportunidade de se liberar parcialmente, de se comunicar, de contar seu sofrimento, alguns porquês de seus comportamentos incontroláveis, pois as autobiografias evidenciam que se sentir compreendido por outros humanos é crucial para que cada autista, em suas singularidades, possa sentir ter um lugar no mundo.

A escrita tem efeitos autoterapêuticos pelo tratamento do gozo e tem efeitos no laço social, uma vez que tais escritos permitem que cada autista invente, por meio da escrita, um modo de manter seus pseudópodes cada vez mais em direção ao mundo e aos outros, sendo significativo nos textos autobiográficos no campo do autismo, a relevância de uma mudança do lugar que o autor autista pode ocupar no laço social após se expressar por meio de sua literatura.

A escrita e a publicação de textos autobiográficos são descritas pelos autistas das obras consultadas como uma experiência de ser escutado, de apostar que se tem um saber sobre si mesmo e a vivência de ser incluído na produção literária, como autor literário, o que demonstrou ter um efeito sobre o autista, seja em suas possibilidades elaborativas, seja em seu laço social, em uma experiência potencialmente autoterapêutica. Além disso, por meio da personificação de si mesmo, poder ler sobre si mesmos como a um personagem e inventar-se como um personagem a ser lido, favorece um trabalho elaborativo e reflexivo sobre as manifestações autísticas e sobre sua singularidade subjetiva.

Conforme observamos na leitura dos relatos biográficos de vários outros autistas, é marcante o conhecimento de cada autista sobre si mesmo, sobre suas angústias, sobre as maneiras pelas quais podem se relacionar, sobre as estratégias defensivas às quais precisam recorrer, sobre as condições das quais precisam se defender e sobre o que podem inventar para enfrentar suas angústias. Além disso, esse material clínico sinaliza a importância da não definição de estratégias no modelo prêt-a-porter, mas ao contrário, escutar, na singularidade de cada caso, quais estratégias já utilizadas por cada autista, quais suas angústias fundamentais e quais são suas maneiras de tratá-las.

A literatura autobiográfica desses vários autistas, como destaca pertinentemente Maleval (2009), são trabalhos criativos, autorais; são soluções singulares, originais, retratos de compensações à falha da incorporação plena do significante que favorecem o estabelecimento de mudanças nas economias do gozo e que permitem a saída do isolamento autístico. A literatura dos autistas retrata decisões de sujeitos que, em suas singularidades, abrem mão de estar fechados na solidão de um mundo isolado e seguro, para se abrirem ao laço com o mundo, com os outros, e, além do importantíssimo trabalho elaborativo realizado por meio desse escrever autobiográfico, tais literaturas nos remetem à importância de nós, do campo da psicologia e da psicanálise, nos debruçarmos sobre a riqueza desse material clínico.

 

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