Gilberto Safra
Psicanalista. Livre-docente em Psicologia Clínica. Professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professor do Programas de Estudos Pós Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Núcleo de Psicanálise.
Jornal de Psicanálise (Volume 42 /76 - 2009)
Este texto procura discutir os registros do masculino e do feminino na constituição do self. Na realização dessa tarefa, toma-se como referente teórico fundamental a obra da psicanalista inglês Donald W. Winnicott. A linha de argumentação do texto desenvolve-se pelo eixo do processo maturacional: o acontecer humano no tempo. Inicialmente, tomam-se os conceitos de elemento feminino e masculino puros, relacionados às duas dimensões fundamentais na constituição do self: o Ser e o Fazer. Em seguida, aborda-se o processo de personalização, no qual os registros masculinos e femininos comparecem de modo significativo por meio da elaboração imaginativa do corpo. Por fim, a participação do masculino e do feminino é discutida no momento da triangulação, correspondente ao momento edípico e também o modo como estes dois registros encontram-se apresentados no registro social.
Com o objetivo de se abordar as questões do masculino e do feminino na constituição do self, é desejável que sejam reconhecidos os diferentes registros nos quais esses elementos comparecem no estabelecimento do sentido de si. Neste trabalho, o tema é enfocado de modo a discriminar o masculino e feminino em cada um dos registros da constituição do self.
Os elementos masculino e feminino puros
No texto “Creativity and its origins” (1971/1992), Winnicott abordou os fenômenos denominados de elemento feminino puro e do elemento masculino puro. O elemento feminino é descrito como estando relacionado à possibilidade de o bebê identificar-se com o seio. Winnicott assinala que o encontro do bebê com o seio possibilita uma experiência de identificação que não é psíquica, mas é constitutiva. Trata-se de uma identificação com o seio que lá está. O seio é ofertado e com ele é apresentada uma possibilidade de ser. O que leva Winnicott a afirmar que a experiência de ser é transmitida pela mãe. A mãe oferta a possibilidade de repousar no horizonte da existência.
O elemento feminino possibilita o emergir do gesto que cria a ilusão, perspectiva fundamental do elemento masculino. O elemento feminino possibilita a quietude sustentada; o elemento masculino abre a experiência de ilusão. A ilusão aparece no momento em que o bebê cria o seio como objeto a partir da necessidade. O elemento feminino relaciona-se ao Ser e o masculino ao Fazer.
O elemento feminino puro possibilita o ser em meio à comunicação silenciosa. O elemento masculino cria o objeto sem o uso de uma representação preexistente. Nessa perspectiva, poderíamos falar de dois modos distintos de apercepção criativa: a apercepção criativa decorrente do gesto e a apercepção criativa decorrente do ser. A apercepção criativa decorrente do gesto possibilita que o indivíduo tenha um acesso à realidade, mas uma realidade que é acessada subjetivamente para posteriormente ser apreendida de maneira objetiva. O indivíduo, em decorrência da experiência da apercepção criativa originada a partir do elemento masculino, pode ir em direção ao mundo na expectativa e na esperança do encontro do objeto necessitado. Nesse caso, surge a possibilidade de objetividade, mas de maneira pessoal.
No entanto, a apercepção criativa decorrente do elemento masculino demanda a experiência decorrente do elemento feminino. É preciso ser e estar, para que o gesto possa recriar o mundo. São essas duas facetas constitutivas da apercepção criativa, originárias do elemento feminino e do elemento masculino, que possibilitam a coexistência do subjetivo e do objetivo. A existência dessas duas possibilidades &– objetivo pessoal, subjetivo pessoal &– compõe o que Winnicott denomina de viver criativo. O viver criativo implica a possibilidade de se estar na existência de um modo subjetivo e de um modo objetivo, de tal modo que se possa alcançar a apreensão objetiva do mundo sem se perder a pessoalidade. Winnicott assinala que a criatividade é, muitas vezes, simplesmente se estar vivo.
O indivíduo que perdeu a possibilidade da experiência do masculino como criação do objeto tende a ter uma objetividade só perceptiva. Assim sendo, ele viverá no mundo de um modo em que a objetividade será simples fruto de uma percepção, sem implicação de sua subjetividade, viverá uma experiência do sem sentido. A pessoa sem a experiência do elemento feminino não tem possibilidade de ser, do estar e do silêncio. A apercepção criativa, do ponto de vista do masculino ou do feminino, brinda a pessoa com a experiência de realidade. O ser humano precisará continuamente recriar o seu contato com cada objeto de seu mundo, de maneira que seu modo de ser possa ser contemplado.
O processo de singularização acontece a partir do momento em que o ser humano, por ocasião de seu nascimento, acorda em sua corporeidade. O bebê humano acorda em uma lucidez que, sem a presença do outro, pode ser uma experiência de agonia impensável. No entanto, é ela que possibilita o aparecimento do gesto. Ação que é criatividade originária. Esse acordar inicial lança o bebê humano, já de antemão, em uma experiência de finitude dada pela própria corporeidade pontuada pela lucidez. A corporeidade do bebê o leva a experienciar a grande questão da sua origem entre duas grandes posições. A posição feminina e a posição masculina. Isso muito antes de existir qualquer consciência, derivada da percepção, da diferença entre os sexos. No feminino, haveria a possibilidade de uma identificação plena com o seio e, no masculino, a experiência do gesto em direção ao seio. O feminino não está só relacionado ao ser e o masculino ao fazer: também o feminino relaciona-se à origem e o masculino relaciona-se ao fim. O feminino emerge na origem, no nascimento, ao se acordar na corporeidade. O masculino direciona-se ao fim, pois toda a possibilidade da constituição de si implica sempre um gesto em direção “à”, inicia-se um caminhar em direção a outro, em direção à próxima formulação da questão originária, em direção ao fim último. Todo ser humano, em sua origem, necessita da experiência de ser e da possibilidade de colocar o próprio gesto em direção ao porvir para que um processo de singularização possa ocorrer. A interação entre estas duas posições, a feminina e a masculina, é o que possibilita o estabelecimento de si. O feminino estabelecido sem o masculino, na ausência de um gesto em direção ao que virá, leva o indivíduo a um dispersar de si no cosmos, o que acarreta a confusão de si com a coletividade. Nesse caso, não há processo de diferenciação, pois o gesto não se coloca como ruptura do que era. É uma simples continuidade. Nesse caso, o ser humano é, apenas, filho da espécie. Por outro lado, o gesto sem a experiência do estar originário &– portanto, sem a experiência do feminino &–, joga o ser humano a um fazer que tenta substituir o ser, surge uma individualidade sem notícia do outro. Isso significa que ele não encontra em si raízes na tradição. Estas são as duas possibilidades, a ausência da experiência do feminino e do masculino, que levam à perda do sentido de si. Como ser paradoxal, o ser humano acontece na polarização dialética do feminino e do masculino, da origem e do fim, do corpo e do gesto.
Do ponto de vista do posicionamento do corpo humano no espaço, poderíamos dizer que o feminino relaciona-se ao deitar-se e o masculino ao levantar-se. A posição feminina e a masculina, cada uma a seu modo, possibilitam uma maneira peculiar de relacionar-se com a experiência da gravidade. Sem a presença do holding, sem o suporte materno &– presença do feminino &– há a experiência de queda. A queda é decorrente da experiência da gravidade sem a intermediação de um corpo humano que dê estabilidade ao corpo do bebê. A queda é a agonia impensável. O gesto que também não pode encontrar o outro é um acontecimento que leva o bebê à experiência de agonia, pois a ação empreendida perde-se no vazio decorrente da ausência do outro humano. É um perder-se no transcendente absoluto, o que é insuportável. Na ausência da experiência do feminino &– a queda absoluta. Na ausência do masculino &– o transcendente absoluto. A interação contínua entre o feminino e o masculino é necessária para que os modos de ser no mundo aconteçam de maneira favorável para a constituição do si-mesmo.
As experiências do feminino e do masculino na origem possibilitam o estabelecimento do sentido de si e da possibilidade de vir a se realizar um percurso pela vida. O self abre-se para um tornar-se, para um devir. Muitas vezes, podem ser encontrados acontecimentos de vida nos quais uma determinada experiência ou situação suspende ou fragmenta as dimensões fundamentais do ethos, tanto em sua perspectiva feminina, quanto masculina. Observa-se nessas situações o aparecimento de sofrimentos de intensa magnitude, reais agonias impensáveis em decorrência de um fenômeno que ocorre em um agora e não na origem.
As duas posições, feminina e masculina, estão postas desde a origem e persistem até o final da vida do indivíduo. São perspectivas importantes de serem compreendidas, sobretudo por seu valor-diagnóstico. Esses elementos são também fundamentais para que se possa compreender a maneira como a sexualidade se apresenta. Por esse vértice, a sexualidade nunca é vista só como uma metamorfose da vida instintiva. A sexualidade pode ser também compreendida como o ressoar da corporeidade nas situações originárias em sua dimensão masculina e feminina. Isso significa que o corpo do outro é encontrado como forma de estabilidade (holding, feminino) ou o corpo do outro é alcançado como alvo do gesto (questão do masculino, matriz do assentamento da libido). Dessa forma, tanto o corpo “estando”, quanto o corpo direcionando-se à, estará transfigurado, veiculando as problemáticas originárias. A sexualidade sempre reverbera os elementos originários da singularização da pessoa. Isto é: todo gesto, todo movimento sexual posiciona a situação originária do indivíduo. A sexualidade porta sentidos, veicula história. Assim sendo, a escolha do objeto sexual sempre está relacionada à problemática originária do indivíduo. Encontra-se no outro, desejado sexualmente, as ressonâncias das próprias questões originárias. O desejo pelo outro reposiciona a situação originária e busca o anseio de si no futuro. O desejo, desse modo, pode também ser compreendido como presentificação da memória do futuro de si. Assim sendo, vemos que a sexualidade é muito mais complexa do que supõe um entendimento orientado somente por uma concepção de “busca de prazer”. A sexualidade relaciona-se ao prazer, mas está sempre reapresentando e reposicionando aquelas que são as problemáticas constitutivas e nucleares da vida das pessoas.
O masculino e o feminino na elaboração imaginativa do corpo
No livro Natureza humana (1988/1992), Winnicott assinala a importância do crescimento corporal para um desenvolvimento saudável, já que os funcionamentos dos órgãos são afetados pelo desenvolvimento da criança. Desse modo, a criança organiza-se de uma ênfase nos órgãos utilizados pela alimentação em direção à preponderância da genitalidade. Os funcionamentos dos órgãos e da corporeidade são elaborados pela criança imaginativamente. Segundo Winnicott, não há função corporal que não se apresente imaginativamente. Graças a esse entendimento, poderemos falar de uma linguagem imaginária dos órgãos. Tenho observado que a elaboração imaginativa de cada órgão propõe um modo de ser e uma maneira de vir a se relacionar com os objetos. Esse campo de pesquisa é muito interessante e fecundo, principalmente para o estudo das manifestações psicossomáticas.
Winnicott afirma que a elaboração imaginativa da função dos órgãos pode acontecer em graus variáveis, desde aquelas imagens mais próximas da experiência física até outras mais distanciadas do físico e mais próximas dos símbolos culturais relacionados àquele órgão. A elaboração imaginativa do corpo organiza-se em fantasias, constituindo o registro psíquico.
O início da vida do bebê acontece por meio de dois estados: o estado de quietude e o estado de inquietude. O estado de inquietude acontece movido pela necessidade do bebê e, como discutido no tópico anterior, relaciona-se à possibilidade da experiência de ilusão, do fazer, do elemento masculino. O estado de quietude possibilita a comunicação silenciosa, ao ser, ao elemento feminino.
O estado de quietude investe com a presença materna os aspectos ‘sentientes’ da corporeidade, ofertando a eles a experiência do feminino. O estado de inquietude investe a musculatura com a experiência do masculino. Perspectivas que ofertam à sensibilidade elementos imaginativos, que a aproximam do feminino, e à musculatura, elementos imaginativos do masculino.
Na constituição da corporeidade de cada ser humano, há uma participação singular dos elementos imaginativos masculinos e femininos. Cada ser humano, independentemente do gênero, tem na constituição de seu psiquismo uma composição singular dos elementos masculinos e femininos decorrentes do modo como sua corporeidade aconteceu.
Ao lado dos elementos imaginários masculinos e femininos decorrentes da experiência corporal, temos a organização de fantasias que acontecem ao redor do tipo de genital da corporeidade. É sabido como a criança do sexo feminino reencontra facetas do modo como experimenta a forma de seu genital nas experiências estéticas das caixas, bolsas, envelopes, papéis, etc. Do mesmo modo, vemos o menino buscando objetos que apresentam sua experiência genital na forma de objetos pontiagudos e no seu desejo de explorar e penetrar objetos côncavos.
O sexo da corporeidade da criança a dota de certos perfis imaginários, que a levam a conceber modos de ser e modos de relacionar-se com o objeto de modo peculiar ao seu sexo.
A triangulação no estabelecimento do masculino e do feminino
Winnicott mostra que é fundamental para a criança ser concebida. Há um trecho bastante interessante, descrito no livro The Piggle (1991), no qual Winnicott relata que em uma sessão a menina traz o pai para a sala de atendimento. Durante a sessão, a garota sobe nos ombros do pai e escorrega por cima de sua cabeça, em direção ao solo. Winnicott assinala a necessidade que tinha ela de reconhecer ter sido concebida pelo pai.
É fundamental para a criança ter sido fruto do encontro amoroso entre sua mãe e seu pai. Isso implica que a criança teria sido sonhada, concebida por seu pai e por sua mãe. Isso é muito mais do que ter nascido do encontro erótico entre um homem e uma mulher. Françoise Dolto, também atenta a essas questões, costumava afirmar que havia muitas crianças com profundas dificuldades psicológicas, pois eram somente filhas do cio. A criança necessita ter sido concebida pelo casal, pois isso lhe dá um lugar humano e transgeracional. Podemos perceber que a triangulação como necessidade fundamental da criança humana precede seu nascimento.
Uma vez que o processo de gestação se inicia, a mãe experimenta um processo de regressão que lhe oferta a possibilidade de identificação com a criança, no estado de preocupação materna primária. No entanto, esse processo só será possível se a mãe estiver protegida pelo pai da criança. Podemos reconhecer que a mãe poderá cumprir suas funções maternas se contar com a presença de seu companheiro, o que possibilita o processo de regressão da mãe. Sem o holding paterno, a preocupação materna não poderá ocorrer, pois a mãe precisará estar em estado de alerta e apreensão, porque não há quem a proteja.
Os problemas da relação mãe-bebê não se originam necessariamente na mãe: podem estar relacionados, por exemplo, à falha paterna, pois ela não encontrou o tipo de proteção que lhe pudesse dar condições para sonhar as necessidades de seu bebê. Mães que se encontram nesse tipo de situação poderão ter maior dificuldade de ofertar ao bebê a quietude necessária para viver a experiência de ser. O bebê, nessas condições, tenderá a uma hipertrofia do fazer, do masculino, pela ausência da figura paterna.
No estado de quietude, o bebê precisa ser sustentado (holding) pela mãe a fim de vir a ter a experiência de continuidade do ser. Winnicott assinala que os braços maternos que sustentam o bebê representam o pai. A firmeza dos braços da mãe, que possibilita a experiência de ser do bebê, é a presença paterna no corpo da mãe. Estamos diante da função materna que se faz pela presença do pai.
Nos estados de inquietude, o bebê poderá experimentar o fenômeno que Winnicott denomina de amor primitivo, quando anseia possuir o corpo da mãe por todos os meios. Nesse momento, a figura paterna presente protege a mãe do seu bebê e protege o bebê de sua mãe. A presença do pai dá a referência para que o amor primitivo possa ocorrer sem riscos. Perspectiva fundamental para o amadurecimento do elemento masculino.
Essa compreensão assenta-se no reconhecimento de que os cuidados maternos acontecem não só na situação triangular, em interface com o mundo. A mãe é a presentificação do mundo, isso significa que as funções maternas acontecem pela presença paterna e pelo que o mundo permite que esse casal possa vivenciar. Em Winnicott, temos sempre a compreensão sobre o que acontece com o ser humano em círculos cada vez mais amplos, sustentando os círculos interiores; então, a figura materna não é simplesmente uma mãe que faz puericultura: ela é sustentada pela presença paterna, e o casal é possibilitado pela cultura e pelo mundo que os circunda. A mãe oferta ao bebê sustentada pelo o que o pai a ela oferta.
O casal lá está para que todo esse processo possa ocorrer &– embora, do ponto de vista do bebê, o pai, supostamente, possa estar invisível. Em um determinado momento do processo maturacional, o pai poderá, por certo período de tempo, substituir a mãe, mas irá substituir a mãe como pai.
O momento em que o terceiro começa a se constituir no horizonte da criança acontece como questão e como possibilidade, pois o terceiro terá grande participação no processo de integração. Trata-se de um momento ainda anterior ao Édipo clássico. O pai poderá ou não ter sido uma mãe substituta, mas em certo ponto do processo ele terá um papel diferente, pois é provável que ele seja usado pelo bebê como um modelo de um ser integrado. Se o pai não estiver lá, o bebê precisará realizar o mesmo desenvolvimento, mas de maneira muito mais árdua, ou ainda usando alguma relação estável confiável com uma pessoa total, que seja um representante de um terceiro. Dessa maneira, percebe-se que o pai pode ofertar o primeiro vislumbre de integração e de pessoa total para a criança.
O terceiro aparece no horizonte da criança como um problema, ao mesmo tempo em que aponta o futuro possível para a criança. Temos aqui a compreensão de um processo de identificação que não se dá só como um evento ocorrendo de dentro para fora, mas, principalmente, de fora para dentro. O pai nessa situação é o sonho da criança de um si mesmo total e realizado &– pressentimento do futuro. O terceiro traz as complicações das relações triangulares, mas ao mesmo tempo traz o pressentimento do futuro. Perspectiva fundamental para a questão da esperança como um elemento fundamental no processo maturacional.
O momento seguinte no processo maturacional é a possibilidade de a criança reconhecer a união do casal. Descobrir o casal unido é encontrar um casal que se relaciona, tem vida afetiva e que se ama. Winnicott compara esse descobrimento à descoberta de uma rocha, ao mesmo tempo em que a criança se apega a essa rocha, porque lhe dá confiança e estabilidade, algo firme como uma rocha que a criança pode atacar, sem que ela corra o risco de ver o casal ser afetado. A presença do casal significa confiança (aspecto relacionado ao elemento feminino), mas também oferta à criança a possibilidade de experimentar sua vitalidade tanto física quanto psíquica (aspecto relacionado ao elemento masculino).
Estes são eventos importantes, pois a conjugação da confiança com a vitalidade funda o campo de experiência psíquica, na qual as diferentes facetas da maturação da sexualidade poderão acontecer. A vida imaginativa pode ser ou não ser um campo de experiência. Torna-se campo de experiência graças ao fato de que existem as presenças reais do pai, do casal em relação amorosa. Isso possibilita que o amar e o odiar possam ocorrer simultaneamente no campo imaginário, pondo em marcha a função simbólica. Claro está que, com a ausência dessas experiências, temos prejuízos significativos para a evolução dos elementos masculinos e femininos.
Essas experiências abrem a possibilidade de que a problemática edípica possa ocorrer. Winnicott reconhece as descrições que Melanie Klein faz do Édipo primitivo, mas ele prefere não chamá-los de Édipo primitivo, porque, para ele, há nesses fenômenos intercorrências que não permitem a aceitação da explicação teórica dada a esses fenômenos por Klein. Winnicott defende a ideia de que só denominemos de Édipo o que foi descrito classicamente.
Embora, como vimos, possamos reconhecer as vicissitudes da situação triangular, até mesmo antecedendo o nascimento da criança, Winnicott prefere nomear de edípica a situação na qual a criança começa a viver a triangulação com pessoas totais. Nesse momento, a presença do pai será fundamental para que seja experimentado como ambiente indestrutível. Esse é um ponto fundamental para que a criança possa experimentar a união do casal como estabilidade. Será a presença paterna que permitirá à criança integrar os impulsos de ódio e impulsos de amor, pois a presença do pai, como aspecto indestrutível do ambiente, permite que as experiências da criança possam ser constitutivas. Nessa situação, o pai será para a criança o protótipo da consciência. A criança conhece o pai e chega a termos com ele graças ao fato de que, por meio de sua presença, toda possibilidade é possível no campo da fantasia. Ver os pais juntos torna o sonho da separação ou da morte de um dos pais tolerável.
O menino nessa situação chegará a substituir a mãe por outra mulher menos ligada ao pai; no entanto, a potência do menino não se torna inteiramente individual, ele a alcança por identificação, e a sua potência será uma nova expressão da potência paterna. O menino toma a potência do pai e a adota: ocorre um compromisso entre o menino e o pai. Por identificação com o pai, o menino experimenta uma potência por procuração e posterga sua potência para ser recuperada na puberdade.
A menina viverá algo semelhante, pois experimentará sua feminilidade por identificação com a mãe, desde que possa também receber o amor paterno como prenúncio de uma relação com seu parceiro no futuro. O pai, por sua vez, ama a filha e a mulher que ela será no futuro.
Nesse ponto, torna-se necessário inserir a questão da castração. Winnicott (1988/1992) ensina que a criança irá em busca da castração pelo fato de que ela lhe possibilita um alívio. Nesse momento, a criança não tem a possibilidade de lidar com a intensidade da excitação decorrente das fantasias edípicas; a castração, assim, lhe dá à possibilidade de poder conter a excitação que, de outro modo, seria para ela um transtorno. Por meio da castração, a criança viverá a potência por procuração, ou seja, usufruirá a potência do genitor.
Para o menino, nesse momento, surge a ideia da morte do pai e, juntamente com a ideia da morte do pai, surge a ideia da própria morte. Aparece também a ideia da castração do pai e a ideia de ser deixado. Emerge a responsabilidade de ter de satisfazer a mãe, o que é horror. E, por fim, da ideia ou compromisso com o pai, emerge a potência do menino por procuração.
Do ponto de vista das meninas, a ideia da morte da mãe é também a ideia da própria morte. Surge a ideia de roubar o marido da mãe, o pênis do pai, o bebê da mãe e assim surge a ideia da sua própria feminilidade. Ocorre a ideia de estar à mercê da sexualidade paterna, faceta do horror. Aí a necessidade da castração, como liberação da menina, dessa possibilidade. Por fim, aparece a ideia do compromisso com a mãe, o que possibilita a identificação por procuração, questão que será resolvida, possivelmente, na puberdade.
A ansiedade de castração tem um papel constitutivo, ela é ansiada, é buscada &– embora do ponto de vista do imaginário, temida. Questão fundamental para o estabelecimento da sexualidade masculina e feminina.
Na puberdade, ocorrerá o confronto: aquilo que existia por procuração é resgatado. Nesse momento, será fundamental a presença do pai, porque ele poderá dizer não e sustentar o confronto. No momento da adolescência, o pai presente possibilita ao adolescente viver sua vida instintiva e, assim, acessar a sua potência sem perigo. O adolescente pode se experimentar em sua masculinidade e feminilidade no mundo de modo fecundo.
A questão cultural
A esses elementos constitutivos, decorrentes do processo maturacional, adicionam-se as representações socioculturais sobre o masculino e o feminino, disponíveis em um dado momento da situação cultural. A cada momento da história, observa-se o reposicionamento das representações culturais.
Em nosso momento histórico, observamos um eclipse do feminino e uma hipertrofia do masculino. No entanto, pelo fato de o feminino tornar-se menos disponível, o masculino, mesmo que enfatizado, surge como caricatura.
De certo modo, o fato de o pensamento winnicottiano debruçar-se tanto para o materno parece ser reação à situação cultural, que parece desconhecer a importância do feminino no estabelecimento do self e para a investigação da psicopatologia contemporânea.
A situação cultural dificulta a experiência de quietude, de sensibilidade, de continência e de receptividade, com sérios prejuízos para o ethos humano. Abaixo, apresento um texto de Adélia Prado, que apresenta poeticamente a possibilidade ofertada pelo feminino:
Mater dolorosa
... Uma vez fizemos piquenique,
ela fez bolas de carne
pra gente comer com pão.
Lembro a volta do rio
e nós na areia.
Era domingo,
ela estava sem fadiga
e me respondia com doçura.
Se for só isso o céu,
está perfeito.(Oráculos..., p. 47.)
Referências
Prado, A. (2007). Oráculos de maio. Rio de Janeiro: Record.
Winnicott, D. W. (1992). Human nature. London: Free Association Books. (Trabalho original publicado em 1988.)
Winnicott, D. W. (1992). Playing and reality. London, New York: Tavistock/Routledge. (Trabalho original publicado em 1971.)
Winnicott, D. W. (1991). The Piggle. An account of the psycho-analytic treatment of a little girl. London: Penguin.