André Green
Sociedade Psicanalítica de Paris
Psychê (Volume 8 /14 - 2004)
Artigo publicado na Revista Topique (mai/1979), com o título original: “Le silence du psychanalyste”, assim como no livro La folie privée (1990, p. 317-346).
Tradução: Marcelo Sant’Anna Pereira (UFMG) e Myriam Anne Mascaux (UFMG), que agradecem a Ana Cecília Carvalho e Maria Teresa de Melo Carvalho, professoras do Curso de Especialização em Teoria Psicanalítica da UFMG, por revisarem partes importantes deste texto.
O presente trabalho é uma tradução feita do artigo de André Green, “Le silence du psychanalyste”, publicado na revista Topique em maio de 1979 (e depois integrado ao livro La folie privée de 1990), no qual o autor, a partir de uma discussão com colegas, trabalha com duas perguntas: 1) qual o estatuto metapsicológico do silêncio do psicanalista durante as sessões?; 2) o silêncio do psicanalista existe? Compreendendo esse silêncio como fazendo parte do enquadre analítico, o autor discute as várias significações que ele pode comportar.
I
Durante o último outono discutimos, com um grupo de amigos psicanalistas, sobre o silêncio do psicanalista. A discussão mostrou que dávamos ao silêncio interpretações diferentes. Não posso relatar aqui todos os argumentos que foram sustentados no debate1. No entanto, duas questões continuaram em minha memória.
A primeira é: “podemos dar ao silêncio do psicanalista um estatuto metapsicológico?”.
A segunda: “o silêncio do psicanalista existe?”.
Como se pode imaginar, não foi fácil responder à primeira. Quanto à segunda, a existência do silêncio foi colocada em questão pelo fato de que, se é verdade que o psicanalista é silencioso, às vezes até mesmo mudo, esse silêncio é, no entanto, vivo, habitado pelas associações do analista. Era preciso distinguir, então, entre o silêncio como figura do vazio e o silêncio advindo de uma estratégia do calar. Sabemos que Bion recomendou aos analistas serem sem memória, e sem desejo e aproximarem-se, tanto quanto fosse possível, de um estado de vazio interno, para deixar surgir os pensamentos suscitados pelo discurso do paciente. Esta observação ganha valor por ter sido colocada por um representante de um grupo de analistas conhecidos pelo fato de serem pouco silenciosos. E de resto, a recomendação de Bion não é a de ser silencioso, mas de mostrar-se, a cada começo de sessão, tão disponível quanto possível para escutar o que o paciente tem a dizer de novo.
Se o silêncio recobre duas acepções – a do vazio e a da abstinência verbal –, estas devem ser, em todos os casos, colocadas em relação com o intenso trabalho de elaboração ao qual se lança o analista durante sua escuta silenciosa. No caso, para Bion, o vazio é somente um ponto mítico de origem.
No grupo de colegas que participaram da discussão, duas tendências foram colocadas. A primeira, claramente majoritária, permanecia fiel à regra de ouro do silêncio, por todos os tipos de razões técnicas, que eu não preciso relembrar aqui, pois são aquelas classicamente ensinadas na formação psicanalítica. Os analistas que sustentaram essa posição tinham em comum seu ceticismo quanto ao valor da interpretação como mola fundamental da análise. Muitos insistiam sobre a parte maternal, a relação fusional, o nunca vivido, o indizível – em resumo, o “silêncio da mãe” –, como vetor de mudança. A interpretação seria “aprisionante” segundo eles. Lembrou-se, além disso, a propósito do “Tema dos três escrínios”, a equivalência silêncio-morte, e a propósito da “Inquietante estranheza”, que do silêncio não se podia nada dizer.
Os partidários do silêncio defendiam o valor de um mutismo estratégico cobrindo uma massa de pensamentos para não se comunicar, para “deixar o analisando fazer sua análise”, segundo a fórmula consagrada. É como se as virtudes do silêncio repousassem sobre a idéia de que este (silêncio do analista) é sinal de aceitação tácita e de comunicação infra-verbal de sua parte, esse pré-verbal tendo a função de um catalisador que agiria invisivelmente, de tal maneira que o paciente compreenderia sozinho a significação do material comunicado. Observamos, além disso, que Lacan e Nacht (o Nacht de antes do período terminal) – para citar somente eles – concordavam em exaltar o silêncio. A posição de Nacht parecia mais coerente sobre este ponto, pois ele colocava o acento sobre a relação pré-verbal e a virtude reparadora do silêncio, enquanto Lacan, defendendo “a cadaverização (mortificação) do analista”, orientava sua teoria sobre a linguagem, como se o trabalho sobre a linguagem na relação do sujeito ao significante se fizesse dentro e pela enunciação na transferência. Certamente o analista silencioso não deixa de interpretar. Mas então está claro que a economia de interpretação, que recomendamos seja rara, concisa e breve, advém de uma concepção oracular. Estamos aqui do lado oposto de Winnicott, que nos lembra que com certos pacientes somos utilizados por nossas carências, na medida em que elas representam as carências iniciais do ambiente.
As coisas não são simples assim, pois ao contrário, insistiu-se em outro momento sobre a necessidade de frustrar o paciente. De fato, a questão deve ser colocada de outra maneira: “silêncio de qual analista, atrás de qual analisando, em qual sessão e em qual fase da análise?”.
Uma outra tendência apareceu dentro do grupo, que colocava em questão esta regra de ouro sobre os seguintes argumentos:
1) Pode-se dizer que esta regra nunca foi enunciada por Freud nos seus escritos técnicos. O que sabemos de sua prática mostra que em geral ele era muito pouco silencioso, se bem que o tenha sido com certos pacientes: o grupo de analistas ingleses que estavam em análise com ele na mesma época de Kardiner (1978) – o informante que nos contou sobre isso. Ademais, aqueles que trabalharam com os analistas vienenses podem testemunhar que eles não eram nem muito silenciosos nem muito neutros.
2) Não se pode pretender que esta regra seja objeto de um consenso, posto que os encontros com os analistas ingleses mostram que eles intervêm com freqüência, independentemente da corrente a que estão ligados (grupo de Anna Freud, de Mélanie Klein, ou grupo independente).
3) Na prática analítica contemporânea as neuroses clássicas são raras. Quando se tem a sorte de encontrá-las entre nossos analisandos, elas mostram-se difíceis de analisar. Por outro lado, os casos em que dominam os traços narcísicos, que pertencem aos estados limites ou que apresentam sérios problemas de caráter, mostram que o silêncio do analista é improdutivo, seja porque os pacientes o suportam mal, seja porque se instalam em uma posição de falso- self analítico. O problema é então rejeitar esses candidatos à análise entre os não-analisáveis (quando os reconhecemos antes que esta comece), ou o analista, tendo aceito a análise, tem de interrompê-la ou ainda suportá-la, em uma cumplicidade mais ou menos consciente, em uma falsa análise. Resta ainda a possibilidade de modificar a técnica. Neste último caso, a questão seria: “o que estamos fazendo? Psicanálise? Psicoterapia? Improvisação artesanal? Manipulação?”.
No entanto essas objeções, que compartilho, deixam pendente a questão do estatuto metapsicológico do silêncio.
II
A posição teórica e axiomática que escolhi define-se assim: o silêncio do analista só é compreendido como parte do enquadre psicanalítico. Seu sentido só se elucida se estiver incluído no conjunto das condições que o definem, e que constituem o a priori da psicanálise, ou da aplicação do método psicanalítico ao tratamento psicanalítico.
Sobre a questão do enquadre psicanalítico, convém referirmo-nos aos trabalhos de Winnicott, Bleger, J.L. Donnet e aos meus (meu relatório de Londres, em particular). Não retomarei esses argumentos aqui.
Observemos desde já que o silêncio do analista é solidário dos outros parâmetros que definem a situação analítica. Assim, o analista visível no começo da sessão cessa de sê-lo ao longo dela para tornar a sê-lo no final; o paciente em análise suporta esse silêncio na posição deitada, na qual sua motricidade está restrita; este conjunto de condições, do qual o silêncio faz parte, é indutor de movimentos de pensamentos endereçados a esse objeto inacessível, que retornam sobre o analisando, encadeando-se a outros, sem relação aparente com os precedentes; esse silêncio torna-se, então, como a tela de fundo sobre a qual se desenrola um pensamento associativo que imita o regime fluente de energia livre; se o discurso do paciente é mesmo linguagem, ele desperta no analista um enxame de representações. Todos esses traços, os mais familiares da experiência cotidiana do analista, a ponto de nem pensar mais neles, evocam a comparação com o sonho. Retomarei mais à frente a justificação deste paralelo, em uma tentativa de articular o modelo da prática com a teoria. No momento eu me autorizarei a fazer esta aproximação para enunciar uma fórmula: assim como o sonho é o guardião do sono, o analista é o guardião do enquadre, cujo silêncio é o principal parâmetro. As formulações teóricas feitas por Winnicott sobre o enquadre são incompletas, pois ele é muito mais que a metáfora dos cuidados maternos. O enquadre seria como uma matriz simbólica, um continente ele próprio contido, uma condição do sentido que depende de um outro sentido.
A primeira idéia que eu gostaria de defender é que a função silenciosa do analista é independente da quantidade de palavras (ou de informação) que ele introduz no enquadre analítico. De fato, essa função depende do silêncio que o analista mantém na sua resposta interpretativa quanto ao conteúdo manifesto do discurso. É porque, por mais prolixo que o analista seja, o analisando tem quase sempre o sentimento de que ele (o analista) não diz o suficiente e, sobretudo, que não responde às questões que lhe são colocadas, que em consideração ao conteúdo manifesto, ficam sem resposta. Quando o analisando tem o sentimento de que o analista disse muito, isto sempre quer dizer que o analista disse o que o analisando não deseja escutar. É preciso opor do lado do analista, assim como para o analisando, a palavra plena à palavra vazia. Um analista pouco falante pode abrir a boca só para dizer uma palavra vazia. A palavra plena é sempre interpretante (direta ou indiretamente), e pode tomar a forma do silêncio.
Porque o referente da análise é a relação da pulsão com o inconsciente, a finalidade do discurso inconsciente do analisando é provocar a “ação específica” (Freud). A palavra do analista é metáfora de ação. Mas esta é – e deve ser – somente uma metáfora. O que implica que o conteúdo manifesto seja desviado, subvertido. O que explica a insatisfação, algumas vezes, de certos analisandos que respondem a esse desvio imposto à “ação específica”, isto é, da ação suscetível de fornecer à pulsão sua satisfação: “mas então o que devo fazer?”. Esta questão é normalmente incluída no conteúdo do que eu chamo de “contra-interpretação” (locução formada sobre o modelo de contratransferência), que designa a réplica do analisando – não importa qual seja – à interpretação do analista.
Além disso, a interpretação não se opõe ao silêncio, na medida em que o silêncio é interpretação. Há apenas modelos diferentes no enquadre analítico. Como me dizia uma paciente: “num consultório de psicanálise a gente não pode tropeçar no tapete sem que isto queira dizer alguma coisa”. Você não ficaria surpreso de saber que algumas sessões depois ela tropeçou2 (ou tropeçou de propósito) no meu tapete. Que eu me cale ou que eu fale, isto sempre quer dizer algo. A questão vale tanto para o analista como para o analisando: “dado que isto quer necessariamente dizer alguma coisa e que eu tenho a escolha entre vários sentidos possíveis, qual o melhor?”. Do mesmo modo, o silêncio pode significar várias coisas para o analisando, dependendo dos momentos de uma análise ou de uma sessão: fusão, interesse, cuidado atento, cumplicidade, respeito ao discurso, consentimento (“quem cala consente”), indiferença, sono, rejeição e até mesmo desejo de eliminação deste. A questão é saber se é mais proveitoso deixar correr o fio, ou o filme da projeção, ou mostrar porque tal afeto, tal representação, mais que outra, manifesta-se no analisando. “Quem fala a quem, para dizer o quê, em que momento e onde?”.
A economia da palavra do analista foi recomendada. O que quer dizer economia: poupança, sem dúvida (mas o que é poupado?), também e, sobretudo, transformação – “Oikos nomia”, a lei da casa. Se a lei não é o oráculo, a poupança parece ser aquela do risco pequeno: o de se enganar manifestamente. Bion me dizia: um paciente que não pudesse enganar seu analista (to make a fool of his analyst) deve ser muito doente. A economia é também recomendada no sentido de economia de meios que uma solução elegante comporta sempre. T. Reik sublinhou o papel positivo da surpresa que marca a interpretação que produz mudanças. Se eu oponho à interpretação econômica a idéia de um processo interpretativo no curso de uma sessão, então a surpresa nasce precisamente quando, depois de três intervenções aparentemente insignificantes e perfeitamente assimiláveis, surge uma interpretaçãosurpresa, que tem o dom de provocar o silêncio, sempre a ser respeitado, na medida em que é um sinal da elaboração muda. Um paradoxo, a respeito do qual estou certo que muitos contestarão, é afirmar que o enquadre analítico induz a produção de um discurso, que a interpretação conduzirá ao silêncio de pontuação, seguido de novo lance associativo. O silêncio de elaboração será um silêncio repartido, que o analista não deverá romper em caso algum. É aqui o momento de relembrar que, segundo Winnicott, o verdadeiro self é silencioso e nunca se comunica com o analista. Da mesma forma, é preciso dizer que o silêncio do analista protege sempre seu self silencioso. Pois, por mais prolixo que seja, nunca deve falar de si mesmo como tal. E se é impossível para o analista não se revelar, essa revelação pode sempre ser o objeto de uma projeção.
A função silenciosa é complexa. Ela mora nas cavidades do discurso do paciente, é a sombra desse discurso, sua negatividade. Por ocasião da associação livre, esta função está delegada ao analista. Isso quando esta delegação se faz na totalidade, em bloco. Mas essa função é também fragmentada nos intervalos do discurso, as descontinuidades articulares, os brancos que a associatividade requer. Quando o analista toma a palavra, só conhece a linha do que ele tem a dizer: a interpretação forma-se pelo trabalho sobre os bran-cos do discurso, na descontinuidade associativa. Ela forma-se no momento mesmo da ligação do ato de enunciação que re-inclui e reúne o que os brancos apagaram e dissociaram. Um analista que formulasse suas interpretações claramente para si antes de dizê-las estaria atormentado por uma obsessividade que ignoraria a mensagem do inconsciente (o seu), incluindo os riscos dos lapsos, sem reajuste possível. Notei que algumas de minhas interpretações eram agramaticais e pensei: tanto melhor, pois eu forneceria assim material ao meu paciente sobre minha contratransferência, mantendo um discurso vivo que não estava separado de suas raízes inconscientes por meio da elaboração pré-consciente. Toda interpretação advém do pré-consciente, porque a interpretação é o duplo resultado de uma formação de pensamentos e de colocação em palavras, assim como o inconsciente é colocação em cadeia de representação e afetos.
A função estruturante do silêncio do analista não é duvidosa. O silêncio constitui a tela de fundo sobre a qual as figuras projetivas do paciente vão se mover (ou se emocionar), desenhar, escrever, compor. Seria como um a priori da interpretação. Resta dizer que desde sempre os analistas tiveram que reconhecer que existiam pacientes “que não suportavam o silêncio”. As conclusões que foram tiradas daí são bem discutíveis. Certamente, diante da inadequação da técnica dita clássica, relegamos esses pacientes para as trevas externas da psicoterapia. Eles não seriam dignos do silêncio de ouro do psicanalista. Mereciam somente o desprezível chumbo da palavra do psicoterapeuta. A escola inglesa toma um outro partido, inventa sua própria técnica analítica. Mélanie Klein contribuiu muito para essa mudança. Mas Winnicott foi o primeiro a denunciar a cumplicidade entre analista e paciente, ponto sobre o qual ambos têm o sentimento de que a análise, bem ou mal, avança, até o dia em que chegam à conclusão de que a análise deslizou sobre o analisando como água sobre as penas de um pato. Winnicott diz: “nem todos podem se permitir fazer uma crise psicótica”. Essa observação sobre a cumplicidade – da qual eu mesmo fui cúmplice durante muito tempo –intrigou-me. Como a criança, o analisando tem uma grande capacidade de adaptação, mesmo quando ele é muito perturbado. Como a criança, ele é também capaz de durante longos anos constituir silenciosamente sua neurose ou sua psicose, até o momento em que a descompensação brutal intervém. Como a criança com seus pais, ele brinca de perde-e-ganha, fazendo fundo sobre (ou com) as defesas de seu analista, do qual conseguiu fazer um comparsa involuntário para o não-desenvolvimento de uma neurose de transferência; talvez precisamente porque o paciente não tenha uma neurose para transferir, mas talvez uma psicose, uma pré-psicose, uma depressão, um estado limite “de transferência”.
Essas estruturas são transferíveis e analisáveis? Muitos analistas respondem negativamente (ver sobre isto a discussão de Anna Freud de meu relatório de Londres, Int. J. of Psychoanal., 1976). O que me parece certo é que elas colocam à prova a contratransferência do analista, precisamente sobre a questão do silêncio. O silêncio do analista pode dar início à absorção desses estados no tratamento, isto é, a interromper a análise sobre uma non-liquet (não-solução) que deixará no analisando uma potencialidade patogênica, que o exporá a outras descompensações, e daí esses casos a “n” pedaços, com o mesmo ou com um outro.
A coerência triangular (neurose infantil, neurose adulta, neurose de transferência) é satisfatória para a mente que observa do exterior o desenrolar das operações – o caos psicótico não estruturado, desestruturante –; o nada objetal, as duplicações narcísicas, a carapaça esclerosada, a esfera dos casos limites, não são suscetíveis de se desvelarem sobre a tela de fundo do silêncio do psicanalista. Os vínculos (Bion) não se fazem espontaneamente, a relação “energia livre-energia ligada”, cuja linguagem é o lugar de transformação, dão melhor acesso às metáforas vulcânicas ou desérticas, a carga pesando sobre o significante, suscetível de produzir fenômenos de fissão nuclear semântica. Essas imagens apocalípticas podem nos dar uma idéia daquilo de que o analista se protege para assegurar sua tranqüila existência. Afinal, o paciente vem às sessões, paga regularmente, e se suicida com pouca freqüência; é raro que ele termine em um hospital psiquiátrico. Isto é o que eu chamo de loucura privada que somente a situação analítica revela, nos momentos em que ela corre o risco de se despedaçar, de se fissurar, de se cindir, como o Eu (Moi) do qual Freud fala em seu artigo Neurose e psicose, de 1924.
Essa capacidade de se adaptar, quando o paciente não interrompe a análise pela fuga ou atuação danosa à análise, é tal que o paciente, tendo visto outros, organiza-se no silêncio do analista, por um silêncio vingativo, escondido sob o jogo do que Lacan chama de “palavra vazia”. A análise permanece então letra morta, e a dupla se entedia. Ora, não há nada mais mortífero para a análise que o tédio silencioso do analista. Os julgamentos de valor intervêm então: “o paciente não merece a análise”; “ele ou ela não compreende nada!”. Seria ótimo ver o que o próprio analista compreende.
O silêncio do analista, nesses casos, não é mais a condição favorável à eclosão da neurose de transferência, mas a constatação de seu não-lugar. É recusando-me a esta situação, mortificante para mim e para meu paciente, que decidi colocar em questão a regra de ouro do silêncio do analista.
III
É surpreendente ler sob a pena de Freud, em Construções em análise – escrito que parece revelar uma reflexão atrasada em relação a Análise terminável e interminável –, uma observação bem tardia:
(...) o trabalho de análise consiste em duas partes inteiramente diferentes, isto é, ele é levado a cabo em duas localidades separadas, envolve duas pessoas, a cada uma das quais é atribuída uma tarefa distinta. Pode, por um momento, parecer estranho que um fato tão fundamental não tenha sido mencionado antes, mas logo se perceberá que nada estava sendo retido nisso, que se trata de um fato universalmente conhecido e, por assim dizer, auto-evidente, e que simplesmente é colocado em relevo aqui e examinado de modo isolado para um propósito específico” (1976, p. 292).
Essas precauções estilísticas não são de forma alguma usuais na escrita de Freud. Elas deixariam antes pensar que mascaram mal uma tomada de consciência bem tardia. Antes tarde do que nunca. Para entender o longo espaço de tempo que foi necessário para essa constatação evidente, é necessário voltar.
Uma questão fundamental da psicanálise é a das relações entre os modelos teóricos e a prática clínica. Estas relações não são sempre claras na obra de Freud. Esboçarei em linhas gerais um afresco imaginário dessa obra, em que distinguirei quatro períodos.
Há um primeiro período, que chamarei de tateamento. Ela estende-se desde Estudos sobre histeria até A interpretação dos sonhos. Os trabalhos clínicos incitam Freud a construir o primeiro modelo teórico. É o Projeto de 1895 e seu fracasso. Com A interpretação dos sonhos inaugura-se o segundo período, de formação de um modelo teórico e clínico. São colocados nessa época quatro eixos: os sonhos (A interpretação dos sonhos), a transferência das psiconeuroses de transferência (Dora), a sexualidade infantil (Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade) e a linguagem (Os chistes e sua relação com o inconsciente). Em cinco anos o jogo está completo.
O que é preciso reter da ruptura entre O projeto e A interpretação dos sonhos é que, com esta obra, implicitamente, Freud forneceu um modelo não somente de um aparelho psíquico mas também do enquadre analítico. É comum observar que o enquadre analítico, do qual Freud é o descobridor, da mesma forma que é o descobridor do inconsciente, somente foi objeto de justificativas pragmáticas, enquanto, na verdade, institui uma relação absolutamente original e inteiramente nova entre dois seres humanos. Proporei então a seguinte hipótese: o modelo do Projeto foi abandonado porque era um modelo aberto a todos os ventos. Ele inclui o sistema nervoso periférico e central, cujo conjunto caracteriza o sistema da vida de relação com seus dois andares, primário e secundário; Freud acrescenta aí – é sua originalidade presente desde essa etapa – o sistema pulsional, que eu compreendo como transformação do sistema nervoso vegetativo ou autônomo, nas referências neurológicas de seu tempo, em sistema significante do corpo pulsional, e enfim, sistema da linguagem. Cada um desses sistemas é fundado sobre o arco-reflexo ao qual Freud referir-se-á ainda em A interpretação dos sonhos, com um pólo receptor e um pólo motor: assim, sensibilidade e motricidade para o sistema periférico, percepção e ação para o sistema central, pulsão e afeto para o sistema precursor da vida pulsional, emissão e recepção para a linguagem. A ciência da época vê na consciência o estado supremo de integração, porque ela só considera os dois sistemas da vida de relação, centrando a atividade psíquica sobre as relações entre organismo e meio ambiente. Freud compreende, então, que essa visão é demasiadamente vasta para captar a referência essencial que ele procura: aquela que governa a atividade psíquica interna.
Esse descentramento da psique na direção do sistema pulsão-representação-ação específica solicita que Freud opere uma redução do modelo do Projeto, sacrifique o modelo relacional em relação com o mundo exterior, aceite a colocação da consciência fora de circuito e consinta em ter do mundo interior somente uma visão retrospectiva e indireta. É isto que o modelo do capítulo VII teoriza. Freud fecha o pólo perceptivo (o sujeito fecha os olhos e “alucina” no sono), fecha o pólo motor (o sujeito é paralisado quando dorme) e deixa desenrolar os acontecimentos psíquicos reordenados pelo trabalho do sonho. Coloco de lado os detalhes que são conhecidos por todos. Fazendo isso Freud fecha-se na caixa preta do sono, mas ao contrário dos behavioristas, e concordando mais com os platônicos (mito da caverna), ele reconhece em seu seio “a verdadeira vida” psíquica. Tomado nos limites do sonho, herói e testemunha deste, ele viveu o sonho sem compreendê-lo; em seguida, no tempo do despertar, lembra, associa, faz as ligações entre restos diurnos, pensamentos latentes, desejo do sonho, em uma perspectiva interpretativa conjectural. Tudo se passa no a posteriori do já sonhado, na apreensão indireta para tentar alcançar o lugar “onde estava” (ou isso estava), como o analisando procura reencontrar o passado perdido.
Ora, o fato essencial é a homologia implícita do modelo do sonho e do modelo do enquadre analítico. No interior da sessão não existe fechamento do pólo perceptivo, mas o analista oferece ao analisando uma percepção constante (esta que se vê de seu divã) e se coloca fora da vista do analisando. Não há tampouco fechamento do pólo motor, mas a motricidade é restrita pela posição deitada. É entre esses dois pólos que se desenrola o discurso associativo, a consciência estando conservada, mas a censura moral e intelectual supostamente suspensa, da mesma forma como é diminuída no interior do sonho. A concordância entre os dois modelos funda a articulação entre teoria e prática. A leitura atenta de A interpretação dos sonhos já indica os delineamentos dos outros constituintes do modelo completo, a saber: a transferência, a sexualidade infantil e a linguagem, que serão ulteriormente elaborados por Freud nos trabalhos que citamos.
O terceiro período se abrirá com Além do princípio do prazer, no qual os remanejamentos da última teoria das pulsões apenas anunciam a segunda tópica, absolutamente solidária do dualismo pulsão de vida/pulsão de morte, este que se deixa freqüentemente de definir. Mas o que me intriga é a reavaliação paralela da transferência e do sonho. A primeira é explícita (compulsão à repetição), a segunda implícita através dos pesadelos da neurose traumática. Enfim, Freud anuncia Winnicott, introduzindo a importância do jogo, e Lacan pela teoria da linguagem, que a oposição fonética que ôôô-da ilustra. Mélanie Klein já não está no horizonte, se compreendermos o jogo como destruição-reparação – quer dizer, processo de luto? Mas no que me concerne, é sobre a introdução do silêncio na teoria – as pulsões de morte agem em silêncio, todo o ruído da vida vem de Eros – que acho útil sublinhar a importância.
Na articulação entre os capítulos II e III de O ego e o id, um momento teórico decisivo pode ser destacado. No capítulo II Freud debruça-se com atenção sobre as relações Cs-Pcs-Ics, vistos sob o ângulo dos vínculos entre representações de coisa e representações de palavra: apoiando-se sobre os processos observáveis da análise finaliza o capítulo sobre o Eu como superfície – ou projeção de uma superfície – e como Eu corporal. Quando aborda o capítulo seguinte, ele rompe essa linha de reflexão para entrar em um novo campo teórico que introduz a referência ao objeto. É a partir de uma estrutura eminentemente afetiva – a melancolia – que Freud descreve as relações da incorporação e da identificação, e não é por acaso que ele se volta em direção a esta afecção, pura cultura de pulsões de morte. Podemos pensar, então, que é sobre um fundo de silêncio que se passam os processos descritos.
Chego enfim ao último período. Terei a audácia de dizer que é aquele da constatação de fracasso – ou no mínimo um convite à humildade. Faço alusão aqui às últimas obras – que são, por assim dizer, seu legado à psicanálise e à história do pensamento no ocidente: Análise terminável e interminável, Moisés e o monoteísmo, Esboço de psicanálise. Se teoricamente o resultado é decisivo, sobre o plano da prática o balanço incita antes à modéstia. O modelo evolui em direção ao constitucionalismo pulsional, aos traumas precoces e suas defesas, às distorções quase irreversíveis do Eu. O interesse desloca-se do recalcamento em direção à clivagem. A psicose está no horizonte. O campo psicanalítico tende a se estreitar sobre bases mais seguras. E contudo Freud recusa todo comprometimento técnico. Vide suas controvérsias com Ferenczi e Rank.
Conhecemos o resto: Anna Freud, apoiada por Hartmann, Mélanie Klein (pupila de Abraham e de Ferenczi); o neo-kleinismo de Bion (que tenta reunir M. Klein e S. Freud sem passar por Anna Freud); a mediação de Winnicott; e o neo-freudismo de Lacan.
Na verdade, parece-me que se a hipótese da articulação entre sonho setting é legítima, como eu defendo, a preocupação pela coerência deveria incitar Freud a entender que a oposição heuristicamente fecunda é aquela da vida psíquica diurna e noturna. Isto que Denise Braunschweig e Michel Fain têm, em uma perspectiva diferente da minha, sustentado em La nuit, le jour (A noite, o dia)3. E não há dúvida de que esse ensaio, centrado sobre o funcionamento mental, indica a trilha a seguir.
Em minha opinião, o sonho não é a única “atividade psíquica do adormecido”, como poderíamos pensar com Freud, discípulo de Aristóteles nesse ponto. A noite psíquica é mais vasta e mais diversa, já que ela compreende, além do sonho, o pesadelo, os sonhos ditos do estado IV (cf. S. Furst,1978), a ruminação mental da insônia, o sonambulismo, e enfim, o sonho branco de B. Lewin, que eu entendo sob o ângulo de alucinação negativa. De onde um novo mode-lo de relações entre o desperto e o adormecido, para evocar a lembrança de Heráclito, e paralelamente um novo modelo de relações neurose-psicose (este último termo sendo tomado em sentido amplo). Da mesma maneira, a sexualidade não é mais a referência essencial da criança. Ela deve ser reavaliada em relação à dupla que forma com as pulsões de destruição, e certamente em relação ao objeto e ao Eu.
De qualquer maneira parece-me capital, se quisermos fazer a teoria da clínica na perspectiva de articulação prático-teórica, substituir a lógica unitária pela lógica do par. A dupla analítica no setting é homóloga da dupla formada pela criança- infans e pelos pais falantes. Podemos aproximá-la da díade criançamãe, com a condição de situar o pai na ausência dessa relação. O Édipo permanece, como disse Lacan, sendo a condição estruturante-estruturado da teoria e da prática4. O pré-Édipo é uma noção teoricamente insustentável. Posso agora voltar à situação psicanalítica, abordando-a no mesmo nível.
IV
Nas trocas entre paciente e analista, no seio do enquadre analítico, podemos distinguir:
1. O dito do paciente
2. O calado não-dito e sabido do paciente
3. O calado não-dito não sabido do paciente
4. O inaudível e o nunca ouvido do paciente
5. O dito do analista
6. O calado não-dito e sabido do analista
7. O calado não-dito não sabido do analista
8. O inaudível e o nunca ouvido do analista.
Esta maneira de descrever tem, acredito, certas vantagens heurísticas:
1) Silêncio e palavra são solidários e conjuntos em cada parceiro.
2) Se a palavra veicula, sem sabê-lo, um sentido inconsciente, o silêncio é certamente ambíguo, sendo que encobre o escondido (a reticência), o não sabido do paciente e do analista, e o inaudível e o nunca ouvido de cada um deles.
O silêncio não é somente estratégia. O silêncio pode, de fato, ser repleto de palavras silenciosas, portadoras do sentido consciente e inconsciente: pode, igualmente, estar cheio de outras coisas além de palavras. Mas pode também ser o inaudível do nunca ouvido. Não se trata mais neste caso de mal-ouvido5, mas de um negro (ou de um branco) auditivo. Isso pode levar-nos até o não- sentido, ou até um sentido não-verbalizável que deve estar operante, mesmo que em uma forma em que o sentido reveste a aparência de um não-sentido6, em todos os sentidos da expressão, ou seja, não de uma incoerência, mas de um sentido que as leis do sentido não compreendem.
Se optamos por ligar o sentido e a palavra (e o significante não verbal), é preciso acrescentar que a qualidade e a função do silêncio variam de acordo com o tipo de discurso emitido. Isso a partir do duplo ponto de vista do analisando e do analista. Quer dizer que o que o analista sente do discurso do paciente, ou nele mesmo – como silêncio fecundo, estruturante, generativo (no sentido em que se fala de uma gramática generativa), ou silêncio pesado, pulsionalmente sobre-investido, fortemente projetivo ou fusional, ou enfim, silêncio inerte, degenerativo, silêncio de morte – está em estreita relação com os aspectos do funcionamento mental e dos temas que ele deve elaborar. Da mesma forma, o analisando pode sentir o silêncio do analista de maneira correspondente, segundo sua atitude interpretativa.
Descrevi no meu relatório de Londres as situações borderlines, em que o discurso do paciente impunha ao analista emoções afetivas, em um primeiro momento não representativas, mas das quais uma representação ou um complexo de representações emergia (no sentido dado por biólogos a este termo) na mente do analista, como fruto de um trabalho, “exigência” de trabalho imposta ao psiquismo em conseqüência do seu laço com o corporal. Acredito que poder-se-ia comparar esse trabalho àquele que está na origem das teorias sexuais infantis: a sexualidade pode não ser “teórica”? Eis uma questão interessante de se debater. De todo modo, o silêncio é a condição a priori para estabelecer os laços entre os diferentes tipos de significantes, ou entre significantes da mesma natureza. Isto para dizer que o silêncio é o espaço potencial de trabalho do analista, mas que não serve para nada prescrevê-lo de forma forçada, e que ele não desaparece quando a quantidade de palavras emitidas pelo analista perpassa a dose codificada.
“Ele me incentiva a falar” é um julgamento de supervisando recitando sua lição que me leva a sorrir. E quando alguém me diz: “falei demais, ou não o suficiente”, eu me pergunto: “falou de modo justo ou não?”. O que é a única questão pertinente. Ou ainda: “não teria sido melhor dizer aquilo de outro modo?”. Existe uma lógica da interpretação que passa por seu condicionamento, mais do que pela referência econômica da raridade. O silêncio, seja ele de ouro, pode custar muito caro, se não ao analista que recebe seus honorários de qualquer modo, ao menos à análise que se desenrolara no contrato: “sobretudo não diga nada, prometo que não direi nada e não o diremos a ninguém”. Forma de fechar o campo do não-analisado.
O silêncio do analista não é uma meditação, é uma escuta, mas isto é insuficiente. A atenção flutuante dá somente uma dimensão parcial da atitude do psicanalista. Pode-se dizer que o silêncio é o equivalente, na vigília, do sono do analista, no qual ele se escuta escutar, enquanto na cena do discurso ouvido formam-se as associações do analista, tempo prévio à formação e depois à formulação interpretativa. Isto deveria incitar-nos a cercar melhor o discurso interior do analista.
Na medida em que a condição necessária para o discurso interior é o discurso do analisando, direi que é o trabalho discursivo do analisando que rege o silêncio do analista. Isto quer dizer que esse discurso determina se o silêncio que enquadra o discurso interior do analista é estéril ou fecundo, criador de sentidos novos ou repetitivos, desvelador ou parafrásico, quando o analista não consegue estabelecer as pontes semânticas que permitam decolar do conteúdo manifesto para chegar ao conteúdo latente. Aqui a questão é saber se o singular é mais apropriado que o plural, porque uma polissemia, uma pluralidade de sentidos se oferece a todo instante – sentidos múltiplos, entre os quais o analista escolhe segundo suas opções teóricas. Ou seja, segundo ele adote a regra da superficialidade ou prefira compreender e interpretar diretamente na língua fundamental do paciente. Ele pode então encontrar-se frente à fragmentação associativa do histérico, às rupturas permanentes do discurso e ao isolamento afetivo do obsessivo, à monotonia depressiva, à racionalização paranóica, à incoerência esquizofrênica, que o obriguem a escolher estratégias interpretativas apropriadas. É mais indicado, em certas situações em que a comunicação testemunha ataques sobre os laços (Bion), tentar constituir uma trama discursiva de dois sentidos, em um fio a fio verbal em que o discurso do analisando e o do analista tecem o tecido de um discurso reticulado. O risco dessa atitude interpretativa é a introdução de termos alógenos aos conteúdos do paciente. É aqui que o analista deve usar a imaginação psicanalítica, e sobretudo esforçar-se mais do que em traduzir conteúdos, em usar os restos dos fragmentos do discurso do paciente, os esquecidos da sessão – as palavras destinadas a cair no ouvido de um surdo –, para reuni-los em um novo espaço potencial (Winnicott), em uma forma freqüentemente paradoxal. Isso significa que o silêncio do analista é um silêncio laborioso, para o qual seu aparelho psíquico é chamado a contribuir.
Devo precisar que as críticas que enderecei a uma prática lingüistisante da análise, devidas a uma teoria da linguagem insatisfatória para a qual acabo de propor uma alternativa que me parece mais adaptada à psicanálise (cf. Critique, fev/1979, n. 381)11, levam-me hoje a dizer que de qualquer maneira, a atenção às palavras dos pacientes deve ser extremamente rigorosa, sendo que [essas palavras]8 indicam o limite de contenção pelo verbalizável e constituem uma outra forma de complexidade em relação à fantasia.
Com tal procedimento recolhe-se tudo que é verbalizável no discurso inconsciente. Nem mais, nem menos. Isso exige uma produção interpretativa em que a exploração da linguagem deve ser levada muito longe. Mas isso somente é admissível sob a condição de propor um modelo da linguagem do psicanalista. Direi apenas que as transformações do código antilingüístico do inconsciente no código lingüístico do pré-consciente exigem um trabalho silencioso, em que a função auto-referente da linguagem está operando. De fato essa atitude não deve ser sistemática, varia segundo as possibilidades do paciente –, e obviamente, segundo as possibilidades do analista. Existe, na minha opinião, somente uma regra em relação à interpretação. Esta regra é de aplicação simples e difícil. Tudo se resume em saber o que o paciente pode ouvir do analista. Ouvir não significa compreender ou opinar tacitamente, porque é de pouca importância se temos a confirmação ou a invalidação do analisando sobre a interpretação do analista, como diz Freud. Por outro lado, é do mais alto interesse observar o que chamei a contra-interpretação, ou seja, a resposta imediata do analisando à interpretação do analista.
O efeito mais positivo da interpretação cabe em quatro frases:
• Pensei nisso (mas o calei)
• Estava pensando nisso
• Jamais tinha pensado nisso (sempre soube disso)
• Isso me faz pensar em...
As duas primeiras respostas são um ponto-chave, um encontro entre analista e analisando. Significam somente uma coisa: o analista e o analisando estão na mesma freqüência, sem que haja supressão do recalcamento. Da mesma forma a quarta frase significa que há supressão de um recalcamento na perseguição dos processos associativos em direção a um núcleo semântico recalcado. Somente o “jamais tinha pensado nisso (sempre soube isso)” assinala a supressão do recalcamento em relação ao passado (“jamais”, assinalando a atemporalidade do inconsciente). Essa última frase quer dizer muitas coisas, e um dos seus sentidos é: aquilo estava encoberto pelo silêncio que sua interpretação descobriu nos dois sentidos do termo: despido e encontrado. O que é preciso acrescentar é que no caso em que a interpretação é exata, o analista também o é, mesmo que o material tenha sido apresentado a ele várias vezes como “jamais tinha pensado nisso”. Um dos meus pacientes ofereceu-me como interpretação: “puxa! E só agora que me diz isso! Igual a uma moça que se deita com um cara há vários meses, e que quando vai contar para a mãe ela lhe responde: e é agora que me diz isso!”. Em suma, ele sempre soube isso.
Gostaria de acrescentar uma observação sobre a polissemia. Sabemos por experiência que um material pode ser interpretado segundo diversas categorias sub-referenciais (o referente sendo o inconsciente). Longe de precisar escolher uma dessas sub-referencias em relação a uma outra (um “dialeto” do inconsciente, como diria Freud) o que é preciso entender é que a estrutura inconsciente é reverberada-reverberante. Isto significa que as diferentes posições fazem eco umas às outras. É isso que nos permite falar em castração fálica, anal, oral, e que nos permite dizer que a fantasia da mãe fálica significa, em alguns casos, a necessidade de negar a castração pela fantasia do ou dos pênis maternos (cf. “A cabeça da Medusa”), e em outros casos, essa mãe fálica é efetivamente penetrante para o sujeito (por qualquer orifício, ou por todos ao mesmo tempo). Essa é a razão pela qual podemos interpretar o mesmo material sob o ângulo da imago paterna ou da imago materna. A reverberação expressa-se melhor ainda quando o desejo o faz somente por meio da identificação. Logo o Édipo é destruído, reduzido ao silêncio; so-mente o silêncio permite, através de seus vestígios, reparar o jogo de espelhos aos quais ele deu lugar.
É preciso acabar com o realismo genético e mesmo aquele da crônica das figuras fantasmáticas, que se apóia em um historicismo ingênuo, e sobretudo sem nenhuma prova sustentável. A imagem de uma temporalidade espiralar impõe-se aqui, em que a ilusão de continuidade é menos importante do que os desenhos que se podem traçar cruzando espirais que pertencem a níveis diferentes. Uma coisa é certa: não há possibilidade de trazer um para cima do outro, o conteúdo manifesto e o conteúdo latente. Esta verdade é no entanto negligenciada em todas as formas de interpretações simultâneas, que são somente paráfrases do discurso do paciente em um jargão psicanalítico. O que falta decidir são as figuras do recalcamento em pauta (recalcamento, denegação, desmentido, forclusão) e os aspectos específicos deste.
É nesse sentido que falo do silêncio como espaço potencial no analista. O que quero dizer é que a ordenação do universo inconsciente do paciente, segundo as diferentes sub-referências indicadas, supõe sua não-comunicação, a forma mais grave sendo a clivagem, que faz passar o silêncio entre duas posições por meio de uma digressão disjuntiva sem gerar nada. Esta disjunção (que, todavia, supõe a conjunção negativa metafórica dessas posições), ou seja, esta separação, pede uma re-união sob a nova forma da interpretação – que é uma simbolização. O silêncio é o tempo prévio em que a sucessividade transforma-se em simultaneidade, a reverberação concluída permitindo ao reverberado traduzir-se em uma outra sucessividade. Em outras palavras, o silêncio é o lugar do apagamento do manifesto de forma que possa revelar o latente. O silêncio é a ausência pela qual o manifesto cai no vazio para ressurgir sob a forma de latente. O silêncio é condição, tempo no futuro do pretérito, governado pelo pensamento implicativo. Se... então. Ou seja, “se escuto o desejo do discurso, então o discurso do desejo seria aquele”. “Se” é uma condição suspensiva, um suspenso analítico, em que o desejo falível espera do analista que este não lhe faça falta. Um paciente diz em uma sessão: “quando penso que há so-mente um analista que fala em Paris e precisava cair neste!”. Mas no final da sessão ele dirá, antes de me deixar: “eu te agradeço”. Era, talvez, uma forma de me mandar embora, mas não podia deixar de admitir que essas delícias masoquistas escondiam um conflito identificatório com um pai sádico e sedutor, odiado por ter forçado sua mãe a abandoná-lo seis meses após seu nascimento, mandando-o para o campo porque o ar é melhor ali, e um avô bom e generoso, mas em relação ao qual descobriu cultivar impulsões assassinas culpáveis. Na transferência ele usava da projeção alternada dessas duas imagens no meu lugar, sem obviamente ter a mínima idéia desse conflito. Meu silêncio tinha caucionado nele a resistência da “exceção”, ou seja, seu sado-masoquismo profundo parecia uma retorsão legítima do mal que tinha sido feito a ele.
Isto mostra até que ponto o silêncio do analista, silêncio de acolhimento de suas próprias associações, silêncio de espera, silêncio povoado, é sobretudo silêncio de uma “exigência de trabalho do psiquismo do analista em conseqüência de seu laço com o corporal do analisando”.
A idéia que deve prevalecer doravante é aquela da lógica do par analítico representado pela conexão de dois aparelhos psíquicos, um sobre o outro, separados por uma significativa diferença de potencial.
Estou, assim, somente divulgando a versão frutífera do trabalho analítico. É preciso também considerar os bloqueios associativos devidos à contratransferência (no sentido clássico do termo) e sobretudo, parece-me, aos aspectos mais “loucos” do analisando. Por loucura particular não entendo necessariamente a psicose fantástica (digo fantástica, sim) do analisando, imagem de um universo “boshiano9”, cujo pitoresco é às vezes comum. Essa loucura é também uma linguagem louca, um corpo louco, uma sexualidade louca etc. O sucesso da análise depende sobretudo da tolerância do analista em relação a essa loucura particular. O silêncio do analista pode, nesses casos, ser um silêncio de defesa, de recusa ou de refúgio para salvaguardar sua saúde psíquica. Nada o obriga a viver esses ordálios, e se o analista sente-se indisposto por causa desses extravasamentos pulsionais, é melhor que permaneça um analista clássico. É melhor ser um bom analista de neuroses clássicas, se é que existem ainda, do que um mau analista de estados limites. Acrescentarei, finalmente, que ser um analista de borderlines não nos deve levar à cegueira frente às ressonâncias edipianas de todo material. Pois o Édipo está em todo lugar e sempre, desde a concepção do sujeito.
V
Por que as neuroses prestam-se à técnica analítica enquanto as outras estruturas são refratárias a essa técnica? Invocar a regressão parece-me não ser nada mais do que um tapa-miséria teórico. A relação das neuroses com as perversões poderia explicar a adequação das neuroses à analise. A neurose como negativo da perversão seria compatível com as exigências que definem o enquadre analítico, pelo fato de que as perversões colocam em jogo pulsões parciais no seio de um Eu-enquadre (ou estrutura “enquadrante”), que conseguira manter sua unidade narcísica por meio da erotização das pulsões de destruição. O perverso teria, em suma, procedido à narcisização de seu Eu para remediar um risco de desmembramento frente ao insuportável da diferença dos sexos, sacrificando a integração das pulsões sob a primazia da genitalidade. Ou seja, ele teria “escolhido” o narcisismo unificador do Eu contra a fusão das pulsões para com o objeto. Ameaçado pelas pulsões de destruição, teria conseguido ligá-las por meio da libido erótica (o que origina o sado-masoquismo), instaurando a primazia do falo (narcisista) contra a primazia da genitalidade (objetal). A neurose, negativo da perversão, realiza uma unidade simétrica e inversa, ou seja, uma que “des-narcisiza” o Eu, procedendo à fusão das pulsões sob a primazia da genitalidade. Da diferença reconhecida dos sexos, ou seja, a angústia da castração, a fixação fálica torna-se seu refúgio frente ao antro vaginal. Li que Jouhandeau, polemizando com Roger Peyrrefitte, teria dito: “o falo ama o silêncio”. Como se o silêncio fosse a condição necessária de sua eleição ou de sua ereção.
Entretanto, se Freud tem razão, quer dizer, se for verdade que a neurose é o negativo da perversão, o retrocesso em direção à fixação fálica é o primeiro tempo em direção à regressão que permite às pulsões parciais perversas (recalcadas na neurose) manifestarem-se. Mas fazem-no no quadro de um Eu suficientemente narcisizado para autorizar esta regressão das pulsões. O que significa que na análise poder-se-ia estabelecer uma relação de correspondência entre o Eu e as pulsões parciais e o setting e o discurso associativo.
A tolerância ao discurso associativo, simulacro do desmembramento, estaria então sob controle de um Eu investido pelas pulsões parciais da perversão, mas suficientemente assegurado de seus limites, assim como de sua consistência, para que se autorizasse o cancelamento da censura moral e intelectual (ou racional). Quer dizer que as pulsões de destruição ligadas pelo narcisismo e limitadas nas suas expressões pelo sadismo, no que diz respeito ao objeto, não ameaçam de forma perigosa nem o Eu nem o objeto. Resumirei esta situação em uma frase: o analista é sereno em relação ao que pode acontecer com o paciente entre as sessões. Deixa desenrolar-se o processo psicanalítico e a transferência segue seu rumo.
Nos casos que se situam fora da neurose as condições são diferentes. A situação é menos governada pelas relações perversão-neurose do que pelas relações que ligam psicose e casos limites. No primeiro caso o recalcamento é a defesa dominante; no segundo é a clivagem. Nas estruturas oriundas da relação psicose/casos-limites, a parcialidade das pulsões ou não é “totalizável”, ou quando se manifesta, não pode ser contida. Isto significa que as pulsões parciais emparelham-se com os objetos parciais, colocando o Eu sob a ameaça do desmembramento.
Em suma, no caso do par perversão/neurose, Eu e objetos são totalizados (ao preço de recalcamento, o que relativiza muito esta unificação que talvez seja somente uma contenção), enquanto no caso do par psicose/casos-limites, a solução passa pela narcisização prévia do Eu. A fim de prosseguir com a comparação, direi que o neurótico sonha e os casos-limites procuram sonhar, mas se encontram de fato atormentados pelo pesadelo, pelo sonambulismo e pelo sonho branco, mesmo quando parecem conseguir fazer “uma coisa parecida” com o sonho!
O que me parece importante é entender que o Eu desmembrado, as pulsões parciais e os objetos parciais não combinam sempre, e que agrupamentos limitados são possíveis. Assim a perversão, expressão das pulsões parciais, é compatível com o Eu unificado e um objeto relativamente unificado, excluindo entretanto a vagina. Da mesma forma o caso-limite possui um Eu menos unificado do que o perverso, co-existente com as pulsões parciais mais unificadas (pelo menos superficialmente) que o Eu.
Essa distinção entre pulsão e objeto é importante porque acredito que ela possa ser a fonte de conflitos essenciais. É preciso saber estabelecer a diferença entre o que pertence a uma e a outra na sessão.
Como a técnica não silenciosa atua frente à situação? Como operar a narcisização do Eu? Pela operação da ligação, a Bindung freudiana. O analista, em vez de deixar o filme ou o fio associativo desenrolar-se, pontuará o discurso de suas intervenções – que não são todas elas interpretações. Ele ligará os farrapos do discurso, porque aí está a armadilha: o analista pode ser tentado a pensar que esses trapos associativos, por meio de suas inserções no discurso, são contidos por um Eu cujo revestimento mental é suficiente. De fato, a clivagem processa-se entre cada fragmento associativo, justaposto aos anteriores e aos seguintes sem nenhuma relação entre eles. Dito de outro modo, é a simbolização que está em causa. A ligação operada pelo analista tem por meta re-ligar os elementos desligados para poder, em um determinado momento, interpretar e não mais somente intervir. Dois tempos da simbolização: o primeiro reúne, o segundo usa as ligações estabelecidas para reatar com o inconsciente clivado.
Acrescento que esse trabalho de ligação e re-ligação opõe-se ao trabalho das pulsões de destruição. Para ser eficaz, direi que precisa ser superficial. As interpretações profundas, “insistentes” ou sistematicamente transferenciais somente têm, a meu ver, o poder de reforçar a clivagem. Esse trabalho na superfície, na base das associações, tem por objetivo constituir um pré-consciente que geralmente não cumpre sua função de mediador ou de filtro nos dois sentidos, entre consciente e inconsciente.
Uma reflexão mais aprofundada guiar-nos-ia talvez a reconhecer a solidariedade entre trabalho de ligação – erotização das pulsões de destruição – narcisização secundária do Eu recalcamento e pré-consciente. Isso implica que ao mesmo tempo seja teorizada a angústia dos casos-limites e a angústia das neuroses, em que a angústia de castração, junto com a angústia de penetração, reverbere no par de angústia de separação e de angústia de intrusão. Aqui o conceito de distância devido a Bouvet poderia ser repensado. Digamos apenas que a distância em relação ao objeto é somente relevante para o analista, na medida em que permite avaliar o que o analisando pode entender do recado do Outro, que é retornado sob sua forma invertida, segundo a fórmula bem conhecida de Lacan.
O trabalho do analista situa-se no campo transicional descrito por Winnicott, que pode ser definido como uma categoria simbólica. É a via intermediária do símbolo como um “talvez”, e não como algo que é ou não é, mas como algo que pode ser, sem que essa esperança de realização se encontre jamais realizada.
VI
O trabalho do analista é conflituoso. É o produto de uma luta constante entre o ouvir, o mal-ouvido, o não-ouvido, o nunca ouvido, o inaudível – porque não perceptível – e o horror provocado pela audição.
No fluxo associativo do discurso do analisando, a linearidade desse discurso engendra, à medida que progride, efeitos retroativos (feedbacks semânticos), que estruturam a progressão da formulação verbal. A escuta analítica é progressiva-regressiva. O inconsciente não é segregativo – ele expressa-se como pode e faz uso de qualquer recurso. Toda aproximação exclusiva de um só tipo de significantes (verbais, representativos, afetivos, corporais, ativos) é um corte sombrio na polissignificância (equivalente da polissemia para a pluralidade dos significantes). O analista é poliglota e é ouvinte da linguagem do sonho, da fantasia, do lapso, do ato falho e de tudo de que o estilo inconsciente se alimenta. Sem dúvida, o silêncio é o fundo sobre o qual se desenvolvem as figuras das harmonias significantes (e suas dissonâncias). Essa codificação, decodificação, recodificação remete sempre ao outro lugar (da sessão) e ao outrora (da análise). Seria preciso, aqui, em relação a essa intemporalidade do silêncio, dar algumas precisões sobre o tempo em psicanálise e a heterocronia fundamental que a habita. Mas é justamente o tempo que nos falta para fazê-lo.
O poliglotismo do analista, o entendimento dos idiomas, dos dialetos do inconsciente impõe-nos também uma concepção plurifuncional das formações do inconsciente. Acabo de falar da linguagem, do sonho, da fantasia etc. A clínica psicanalítica moderna mostra que não podemos mais aceitar sem crítica as proposições recebidas de modo tão geral quanto esta: o sonho é a tentativa de realização de um desejo. Ainda que esta fórmula de 1932, de Freud (A interpretação dos sonhos fala somente de realização de um desejo de maneira mais complexa e mais matizada, é verdade, mas sem introduzir a cláusula restritiva indicada pela palavra “tentativa”), testemunhe uma evolução do pensamento do primeiro psicanalista. Bion disse que o sonho podia ter uma função evacuatória: livrar-se do desejo por meio do sonho, em vez de elaborar os desejos que gostariam de se realizar. Winnicott mostrou que a fantasmatização hiperativa era o meio de se imaginar fazendo uma série de coisas, enquanto se deseja nada fazer. B. Lewin falou em artigos pouco lidos e meditados, do profundo desejo de dormir na sessão de análise repleta de palavras. Tantas reavaliações impõem uma nova visão dos conceitos fundamentais. Ora, é somente o silêncio propício à elaboração que revela as máscaras do discurso. Acrescentarei que esse desmascaramento silencioso faz-se pelo afeto do analista, desarmônico com as mensagens do discurso. Felizmente o disfarce é traído por índices mínimos, às vezes unicamente estilísticos, que ajudam o analista a entender o inaudível.
De todo modo, o fundamento do silêncio em análise é a emergência (daí a renovação) da representação. O trabalho analítico consiste na análise das representações do paciente (no sentido conceptual mais amplo) para lhes substituir um outro sistema representativo, por meio do qual advém o sujeito. É a razão porque o silêncio do analista é somente o meio pelo qual ele recusa a percepção do manifesto, absorvendo-se no silêncio para fazer emergir a representação psíquica da pulsão.
Um modelo geral da atividade psíquica é proposto, então: organização, desorganização/apagamento, reorganização. Este modelo é aplicável a toda forma de atividade psíquica. Ele reformula noções que são familiares para nós: desejo/recalcamento/retorno do recalcado. Na sessão, o silêncio corresponde ao tempo mediano, a interpretação testemunhando o terceiro tempo. É importante relembrar a não-linearidade do trabalho psíquico, sua polifonia. É o sentido da associatividade analítica. A linha rompida das associações corresponde às resistências acordadas em cada ponto da árvore associativa, que obrigam as trilhas a pegar outros caminhos, a se deslocar, a se condensar. A interpretação consiste em adivinhar a via barrada, escondida pelo estudo das relações entre os diversos pontos de ruptura das trilhas, e o que deixaram passar por aí.
Dito de outra forma, o desvio é a função essencial dos processos primários tanto como dos secundários. Condensação quer dizer dois (ou mais) em um, deslocamento quer dizer um em dois. Um nunca é igual a um na psicanálise, por isso que é preciso dois para fazer uma psicanálise. O desvio exige o “dois” como condição necessária e suficiente. É tempo de nos colocarmos a lógica do par; para isso é preciso fazer silêncio sobre a lógica unitária do discurso manifesto.
Isso leva a uma conclusão: a relação da resistência e da associação/ dissociação ao intelecto. Porque, como a inteligência consiste no estabelecimento de relações escondidas, invisíveis, pode-se afirmar que as relações conjuntivas/disjuntivas são fruto da resistência. Freud, no Esboço, escreve que pensamento “deve poder seguir todas as vias”. Evidentemente, nunca pode. O que existe para ser descoberto deve necessariamente ser desviado.
O silêncio é esse lugar que acolhe a dissimulação para desfazê-la e para operar um simulacro de verdade – simulacro no sentido dado a ele pelos auto-res de modelos: um construto. Mas não é necessário que o silêncio se prolongue indevidamente, porque o perigo é que o analisando queira instalar-se nele confortavelmente, no intuito de somente produzir semblante (Lacan). A análise pode, em certos casos, parecer uma partida de xadrez 10, xeque à neurose, aos falsos selves, ao proton pseudos11. Não se deve esquecer que as partidas de xadrez realizam-se em silêncio. Pois a palavra do analista não suprime o fundo de silêncio no qual ela se diz.
A sombra carregada de silêncio segue, ligada a seus passos, a palavra luminosa. Em um texto metafísico, Kafka (1950) escreve: “mas as sereias têm uma arma mais terrível ainda que o canto: é o silêncio. Pode-se imaginar o fato não produzido, embora seja possível que alguém tenha se salvado do canto, mas certamente não do silêncio”. E dizer que quando Ulisses passou em frente a elas, não reparou que tinham ficado silenciosas. E se escapou, é por que uma vez elas se deixaram seduzir pelos grandes olhos dele. Talvez Ulisses, esse astuto compadre, diz Kafka, tenha percebido o silêncio das sereias, mas não fez nada mais do que fingir “para opor a elas e aos deuses a atitude que nós descrevemos como um tipo de escudo”.
Referências Bibliográficas
FREUD, S. Construções em análise. In: ___. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. vol. XXIII.
FURST, S. The stimulus barrier and the pathogenicity of the trauma. Int. J. Psycho-anal. 59: 345-352, 1978.
GREEN, A. La Langage dans la psychanalyse. Belles Lettres, 1983.
________. Le silence du psychanalyste. Topique. Paris. 23(IX): 5-25, mai/1979.
________. Le silence du psychanalyste. In: ___. La folie privée. Paris: Galimard, 1990.
KAFKA, F. Le silence des sirenes. In: ___. La murraille de Chine. Gallimard, 1950.
KARDINER, A. Mon analyse avec Freud. Belfond, 1978.
Notas
1 As opiniões aqui mencionadas só envolvem evidentemente a mim mesmo.
2 No francês, o autor diferencia: se prit le pied de prit son pied, dando assim um nível maior de comprometimento do ato para a segunda expressão (N. do T).
3 P.U.F, 1975.
4 Pena que logo depois ele o renegou.
5 Mal-entendu no texto original. Expressão que se presta ao mal-entendido, sendo que no presente texto a questão é voltada tanto para a própria audibilidade das coisas como para o entendimento em termos interpretativos (N. do T.).
6 Idem nota anterior.
7 Teses que desenvolvi mais tarde (1983) no livro La Langage dans la psychanalyse.
8 Acréscimo do tradutor para maior clareza no texto (N. do T.).
9 Referência a Jérôme Bosh (1462-1516), pintor holandês (N. do T).
10 Jeu d’échecs significa também jogo de fracasso (N. do T.).
11 Termo de Aristóteles, utilizado por Freud na II parte do Projeto de uma psicologia (1895), para a representação enganadora da histeria no caso Emma (N. do Ed.).