Daniel Ortins Salerno
Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
Extraído de palestra apresentada em 2014 na Ireland International Conference on Education (IICE-2014), sob o título "Processing Instruction and the Acquisition of English Adjectival Phrases by Brazilian Learners"
A teoria da linguagem de Chomsky, tal como inicialmente postulada em Syntactic Structures (CHOMSKY, 1959), foi chamada de Teoria Transformacional e sofreu grandes alterações nos anos subsequentes. As pesquisas experimentais com diversas línguas foram fundamentais para determinar a introdução de novos conceitos e dos fundamentos da ciência da linguagem. O capítulo introdutório de Aspects of Theory of Syntax, de Chomsky (1965), conforme um dos seus primeiros alunos observou, “estabeleceu a agenda para tudo o que viria a ocorrer na linguística gerativa desde então” (JAKENDOFF, 2008, p. 26). A partir dessa obra, Chomsky estabelece os três pilares teóricos da nova ciência da linguagem: o mentalismo, a combinatorialidade e a aquisição (JAKENDOFF, 2008).
- Mentalismo: A teoria gerativa da linguagem tem um compromisso explícito com a existência de estruturas mentais formais e abstratas subjacentes ao conhecimento linguístico.
- Combinatorialidade: As sentenças de uma língua não são enunciadas aleatoriamente, tampouco seguem princípios de sistema de cadeias de palavras, conhecidos como modelos de estados finitos ou modelos de Markov1. Conforme Pinker (2004, p. 27) sintetiza precisamente: “a gramática é um sistema combinatório discreto. Um número finito de elementos discretos (neste caso, palavras) é selecionado, combinado e permutado para criar estruturas maiores (neste caso, sentenças) com propriedades bastante distintas de seus elementos.”
- Aquisição: Jakendoff nos apresenta o problema da aquisição afirmando que as regras funcionais de uma língua são abstrações formais e não conscientes. Não for assim, como explicar o fato de que as crianças conseguem adquiri-las em tão pouco tempo, tendo em vista que os pais e colegas não dispõem de meios para verbalizá-las? E, mesmo que conseguissem, não seriam compreendidas, visto que a língua ainda não foi adquirida. A teoria postula a existência de uma Gramática Universal (doravante GU), a qual possibilita a aquisição da língua nativa.
O problema aludido no item 3 é conhecido na literatura especializada como o problema lógico da pobreza de estímulo (WHITE, 2003), ou seja, diante de um input tão repleto de frases não concluídas, enunciados truncados e, amiúde, mal articulados, como é possível conceber a aquisição da fala convergente com o meio linguístico até os quatro anos de idade (HERSCHENSOHN, 2009), sem que haja um mecanismo inato de aquisição de linguagem? Sobre este problema, ou seja, a pobreza de estímulos, Augusto (2005, p. 255) observa:
O problema lógico da linguagem, ou pobreza de estímulo, consistiu em um norteador das preocupações assumidas pelos gerativistas. O fato de crianças dominarem uma língua natural com surpreendente rapidez, apesar da ausência de evidência negativa, da frequência com que sentenças incompletas ou interrompidas são usadas pelos adultos, somado ao fato de que o input a que a criança é efetivamente exposta é finito [...] Isto é, a informação que se faz necessária e não está disponibilizada no input linguístico recebido pelas crianças é atribuída a princípios linguísticos inatos.
A Teoria Gerativa se reporta frequentemente à noção de GU. Porém, é importante salientar que a faculdade da linguagem não pode ser confundida com a Gramática Universal. A GU é o estado inicial dessa faculdade, ou seja, desse arcabouço de conhecimentos com o qual as crianças normais são biologicamente dotadas (AUGUSTO, 2005). É comum também se referir a uma Gramática Gerativa, uma vez que é suposto que a gramática interna que aparelha a competência linguística de um indivíduo é de natureza gerativa, pois gera as expressões de sua língua materna. Chomsky (2002, p. 32) observa que:
Chamamos a teoria da linguagem de Peter [um sujeito qualquer] de “gramática” de sua linguagem. A língua de Peter determina uma gama infinita de expressões, cada uma com seu som e significado. Em termos técnicos, a língua de Peter, gera as expressões de sua linguagem. A teoria de sua linguagem é, portanto, chamada gerativa.
Uma vez explicitado o motivo que levou Chomsky a nomear de ‘gerativa’ essa gramática mentalmente representada, faz-se necessário entender como o modelo teórico explica o fato inegável de que toda criança exposta ao meio natural, em condições normais, adquire sua língua nativa, condição nem sempre verdadeira, caso a criança não seja exposta a um meio onde haja comunicação humana por meio de uma língua natural. Esses casos são extremamente raros, como o do menino de Aveyron, encontrado nas florestas da região de mesmo nome, com a idade aproximada de 11 anos, e que não desenvolveu a fala, como as crianças criadas em condições normais (ITARD, 2011).
Em resumo, o conjunto das representações mentais que um indivíduo tem de sua língua, forma uma gramática interna de natureza gerativa e, como tal, deve ser entendida de forma distinta daquela que nos acostumamos a ver apresentada nos livros escolares. A gramática escolar da língua culta de um idioma qualquer prescreve ou aponta exemplos de escrita e oralidade de autores literários, arbitrariamente escolhidos, como ilustrações válidas daquilo que se convencionou classificar como “falar bem” ou “escrever bem”. A gramática aqui referida tem a ver com um conjunto de regras não conscientes, análogo a um programa computacional que “constrói um número infinito de frases a partir de um número finito de palavras” (PINKER, 2004, p. 14). Chomsky esclarece melhor como essa gramática interna gera algoritmos ou instruções não conscientes de uso desta linguagem ao afirmar que “cada expressão constitui um complexo de propriedades, as quais fornecem ‘instruções’ para os sistemas de desempenho de Pedro: a) seu aparato articulatório, b) seus modos de organizar os pensamentos e, assim por diante” (CHOMSKY, 2002, p. 10).
A Teoria Gerativa postula ainda que a GU possui princípios universais e parâmetros que, quando combinados, configuram um arcabouço de conhecimentos de língua acessível não conscientemente ao falante nativo, quando inserido num meio social que fala aquela língua (GASS, 1993). Jakendoff (2008) compara esse arcabouço de dados linguísticos da faculdade da linguagem ao conjunto de funções ou comandos algorítmicos do sistema visual. Ambos os sistemas, visual e linguístico, empregam igualmente conjuntos de regras abstratas que dificilmente poderiam ser chamadas de conhecimento. Compreendido desta maneira, pode-se conceber a faculdade da linguagem como um conjunto de mecanismos abstratos cujo acesso à consciência é simplesmente impossível. Vemos assim, quão distinta é a caracterização da gramática mental daquela comumente referida nos manuais de redação.
Essa gramática mentalmente representada deve ser capaz de avaliar claramente o que constitui frases aceitáveis dentro de sua língua. Por conseguinte, um indivíduo normal exibe um conhecimento da sua língua nativa superior ao que poderia explicitar conscientemente e consegue discernir os limites de sua gramática sendo capaz de julgar, mesmo que implicitamente, o que constitui uma sentença bem formulada.
O conceito de frase bem formulada é outro importante elemento teórico que deve ser explicado. Frequentemente, linguistas realizam testes de gramaticalidade com falantes nativos, solicitando-lhes que avaliem se uma sentença está ou não bem formulada. As sentenças avaliadas como bem formuladas, ou bem construídas, são chamadas de gramaticais. Quando ocorre o contrário, as sentenças são classificadas de agramaticais. Os nativos de uma língua possuem um conhecimento não consciente sobre o que é uma frase aceita, ou bem construída, em sua língua. Isso não equivale ao que se entende hoje em dia como gramática da norma culta de um idioma. A gramaticalidade de uma enunciação se origina de um julgamento intuitivo, partilhado pelos falantes nativos de um idioma, de que uma enunciação está bem formulada. Esse julgamento independe do grau de instrução dos falantes, os quais percebem, com absoluta clareza, se uma determinada frase é aceitável em sua língua ou não.
Para ilustrar este ponto, apresentar-se-ão alguns exemplos2 de frases que, embora amiúde expressem a forma de organização do pensamento de algumas línguas, são invariavelmente avaliadas como inaceitáveis em português.
(*) – “Eu espero que você isso tenha feito.” (Falante nativo do Holandês)
(*) – “O que carro você comprou?” (Falante nativo do Alemão)
(*) – “Vocês recebem revistas frescas do estrangeiro.” (Falante nativo do Grego)
Os exemplos acima ilustram como frases mal formuladas soam estranhas para os falantes nativos do português e, por isso, seriam rejeitadas num teste de gramaticalidade, sendo então, amostras claras do que os linguistas chamam de frases agramaticais. Essa capacidade de compreender e delimitar as regras combinatórias e articulatórias de sua língua nativa é chamada de competência linguística, a qual compreende uma gama de aspectos muito ampla. São eles, os componentes morfológico, sintático, fonológico, pragmático e léxico; todos devem ser articulados em conformidade com o padrão linguístico de uma dada comunidade. Mais uma vez, retorna-se ao problema da aquisição, ou seja, como pode a criança chegar a um conhecimento tão sofisticado das regras funcionais de sua L1, diante de um input tão precário?
A relação da GU com a aquisição da linguagem pela criança é mais intrincada do que parece. Quando se fala de propriedades complexas e da ausência de explicitação sobre elas, vários exemplos podem ser considerados no português Brasileiro. Apresentar-se-á um caso em particular, citado em sala de aula pela professora Esmeralda Negrão (comunicação pessoal)3. Como evidência de que mesmo termos não indexados na gramática culta obedecem a um padrão de distribuição rígido e não aleatório, foi escolhido o uso da redução “cê”, em português Brasileiro, do pronome de tratamento “você”. Aparentemente, podemos inferir que se trata de um caso trivial de redução, no qual cada ocorrência pode ser aleatoriamente substituída. Porém, percebe-se nas frases seguintes que a comutação não é sempre possível.
(2-1) Você me chamou no meio da multidão.
(2-2) Eu chamei você em alto e bom som.
(2-3)*Eu chamei cê em alto e bom som.
(2-4)*Ela e cê me chamaram.4
Conforme os exemplos mostram, essas frases, comumente não ensinadas na escola, refletem regras combinatórias adquiridas de maneira não consciente pelas crianças na fase de aquisição, o que permite que os nativos saibam julgar apropriadamente as regras do uso de sua língua e consigam distinguir o que de fato constitui uma frase bem formulada de uma frase mal formulada.
Nossa competência linguística também nos possibilita perceber que as sentenças de nossa língua não são o resultado da mera ordenação de itens lexicais em sequência linear. Sem nunca ter passado por um aprendizado formal a respeito desse assunto, sabemos que uma sequência de palavras como “tenho lá belas fotos de feito” não forma uma sentença no português, mas é gramatical no holandês (NEGRÃO; SCHER; VIOTTI, 2003, exemplo meu).
Assim, para explicar a variação de vocabulário e das regras combinatórias existentes entre as línguas humanas, a Teoria Gerativa postula a existência de princípios universais que delimitam, de forma muito geral, a configuração do que é possível numa língua natural, e de parâmetros que delimitam o que é possível na configuração de uma língua específica, por exemplo, o português Brasileiro ou o francês. Em suma, o falante possui um conjunto muito abstrato e amplo de princípios que limitam as propriedades de sua língua e parâmetros que, ao serem fixados pela exposição aos dados, configuram o estado final das regras combinatórias do sistema linguístico adquirido.
Notas
1 Sobre este ponto, ver Pinker, 2004, p. 109.
2 Exemplos recolhidos de alunos de português como L2 pelo autor do presente trabalho.
3 Informação fornecida por Esmeralda Negrão, São Paulo, 2002.
4 O símbolo * representa graficamente a agramaticalidade dos termos.
Bibliografia:
CHOMSKY, N. Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge, Massachusetts, the MIT Press, 1965.
CHOMSKY, N. Linguagem e Mente. 3ª ed., São Paulo: Unesp, 2010.
______. Novos Horizontes no Estudo da Linguagem e da Mente. 3ª ed. São Paulo: Editora Unesp, 2002.
HERSCHENSOHN, J. Fundamental and gradient differences in language development. Studies in Second Language Acquisition, vol. 31, 259– 289, 2009.
ITARD, J. Mémoire et Rapport Sur Victor de L’Aveyron, 2011. Disponível em: http://www.ac-grenoble.fr/PhiloSophie/file/jean_itard_memoire.pdf. Acessado em: 03 de junho de 2013.
JACKENDOFF, R. Language, Consciousness, Culture: Essays on mental structure, Massachusetts, The MIT Press, 2009.
NEGRÃO, E; SCHER, A; VIOTTI, E. A Competência Linguística, in FIORIN, J. L. (org.) Introdução à Linguística: objetos teóricos. 1ª. ed., São Paulo: Editora Contexto, 2003.
PINKER, S. O Instinto da Linguagem. 1ª. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2004.
WHITE, Second Language Acquisition and Universal Grammar, 1st ed., Cambridge University Press: Cambridge, 2003.