Usuário

|[ Entrevista ]| Psicanálise com bebês e crianças


A psicanálise de crianças começou a se desenvolver a partir da segunda década do século XX. Seus dois maiores expoentes iniciais foram Anna Freud e Melanie Klein, que criou a técnica da ludoterapia. Quase cem anos depois, observamos um desenvolvimento assombroso dessa disciplina e hoje, podemos tratar de bebês e crianças pequenas, favorecendo a profilaxia de transtornos mentais graves. Leia a entrevista da psicanalista Luciana Saddi I com as especialistas na área Maria Cecília Pereira da Silva II e Ana Maria Vieira Rosenzvaig III.



 terapia-crianca

 

Luciana: Como se interessaram pelo trabalho analítico com bebês e crianças pequenas?

Maria Cecília: Ao estudar Psicopatologia do Bebê, com Serge Lebovici, descobri como intervenções nas relações iniciais pais/bebês, em poucas consultas, podiam fortalecer as funções parentais e solucionar sintomas de sofrimento emocional no bebê.
Evitar que dificuldade vinculares e sintomas se cristalizem é extremamente preventivo e profilático. E isso é apaixonante. Assim podemos ajudar psicanaliticamente, em poucas consultas, muitas pessoas.

Ana Maria: Tudo começou com o curso de Observação Psicanalítica da relação mãe-bebê – modelo Esther Bick que fiz na Clínica Tavistock, enquanto morava em Londres. A partir daí, ao retornar ao Brasil, fui trabalhar num hospital geral com adolescentes grávidas e, depois, no atendimento psicológico de casais gestantes, numa clínica de medicina fetal especializada no diagnóstico diferencial de patologias fetais e intervenções cirúrgicas terapêuticas no ambiente intrauterino. Ao desenvolver meu trabalho de mestrado, também ligado à metodologia de observação psicanalítica, trabalhei com a relação mãe-bebê no contexto da prematuridade e da internação em UTI Neonatal. Todo esse percurso foi me encaminhando para um contínuo interesse pelo trabalho analítico com pais e bebês.

 

Luciana: Quais as especificidades desse trabalho?

Maria Cecília: O trabalho se realiza preferencialmente nos primeiros 3 anos do bebê conjuntamente com os pais e outros irmãos. Eventualmente trabalhamos com os avós e babás também. As sessões duram entorno de uma hora e podem ocorrer entre 4 e 10 sessões ou mais, dependendo da situação. Não necessariamente são semanais. Muitas vezes atendemos em co-terapia. Ou seja, dois terapeutas para favorecer a continência oferecida à família. Às vezes propomos uma puericultura emocional e vamos acompanhando de tempos em tempos a interação e o desenvolvimento emocional do bebê.

Ana Maria: Como trabalhamos com bebês ou crianças bem pequenas que, muitas vezes, ainda não andam ou falam, o atendimento clínico sempre inclui a presença o adulto cuidador, geralmente mãe e pai, mas também, babás, avós ou outra pessoa responsável pelos cuidados mais constantes e diretos do bebê. O trabalho é dirigido principalmente ao vínculo, ou seja, à relação que se estabelece entre o bebê e seus pais, e que será fundamental para constituição do psiquismo do bebê, assim como para o bom exercício da parentalidade.

Diferentemente do tratamento psicanalítico clássico que é geralmente longo, o trabalho analítico pais-bebê costuma ser mais rápido. Muitas vezes, apenas algumas sessões são suficientes e possibilitam uma reorganização no modo de interação, consciente e inconsciente, da dupla (bebê e seu cuidador). A plasticidade do psiquismo nascente do bebê, assim como a oportunidade de oferecer uma escuta e presença empática e continente às angústias dos pais que procuram ajuda por enfrentarem problemas no contato com seu novo bebê, são circunstâncias que favorecem respostas rápidas e significativas na direção da cura. É um momento privilegiado de permeabilidade e acesso aos elementos conscientes e inconscientes presentes na dinâmica da relação.

Outro ponto interessante é que o tratamento psicoterapêutico com bebês implica, muitas vezes, um trabalho interdisciplinar. Em muitos momentos, o tratamento das dificuldades no vínculo vai exigir a interlocução entre psicanalistas, pediatras, neurologistas, fonoaudiólogos, psicomotricistas, psiquiatras e outros.

 

Luciana: Quando pais, profissionais e cuidadores devem procurar a avaliação de um psicanalista?

Maria Cecília: Quando há dificuldades vinculares, dificuldades no sono ou alimentação, problemas com controle esfincteriano, irritabilidade, excesso de agitação, dificuldades na interação afetiva e intersubjetivas.

Ana Maria: Normalmente, são os distúrbios funcionais ligados às funções corporais e sociais fundamentais do bebê que vão apontar para possíveis dificuldades no vínculo: distúrbios de sono, dificuldades na alimentação-amamentação, agitação ou irritabilidade exagerada, encoprese ou retenção de urina sem causa orgânica, ou a falta de uma comunicação social expressiva e responsiva (olhar, sorriso) por parte do bebê.

Vale ressaltar que, ao identificarmos dificuldades no vínculo, quanto mais rápido pudermos intervir melhor.

É preciso lembrar que nos primeiros momentos de vida o bebê é totalmente dependente de seu cuidador, tanto nos seus cuidados físicos como na regulação de seus estados afetivo-psicológicos. Nesse sentido, qualquer dificuldade em um dos lados da relação – cuidador ou bebê – irá influenciar enormemente o outro lado, perturbando a possibilidade de interação e regulação harmônica e empática entre a dupla. Normalmente quando temos bebês tranquilos, temos pais cuidadores tranquilos e vice-versa.

A possibilidade de estabelecer uma interação harmônica é um sinal fundamental. Essa normalmente vai se estabelecendo na medida possível da regulação dos ritmos, possibilidade de comunicação e interação entre pais e seus bebês.

 

Luciana: O que mudou no campo da clínica de 0 a 3 anos, considerando os últimos 50 anos?

Maria Cecília: Cada vez mais cedo somos capazes de identificar transtornos do espectro autista e intervir precocemente muitas vezes impedindo a cristalização dos sintomas mais sérios.

Ana Maria: Um ponto que considero muito importante foi a instalação de um diálogo interdisciplinar e a valorização de contribuições oriundas de pesquisas das mais diversas disciplinas e áreas de conhecimento - como a psicanálise, psicologia do desenvolvimento, a etologia, os estudos sobre a origem da linguagem, as neurociências e a genética – na busca de uma maior compreensão do mundo do bebê e de suas interações iniciais com o mundo ao seu redor.

Além disso, outra mudança fundamental foi um olhar cada vez mais precoce para a identificação de dificuldades nas relações iniciais do bebê e seu ambiente e os riscos para o potencial desenvolvimento de patologias graves. É uma visão e prática preventiva que vai sendo instituída no trabalho clínico com bebês e crianças pequenas.

A partir de importantes pesquisas e descobertas sobre a patologia do autismo, foi desenvolvido no Brasil o protocolo IRDI – Indicadores Clínicos de Riscos para o Desenvolvimento Infantil, que busca identificar precocemente situações de risco para o futuro desenvolvimento de transtornos graves. Há algumas décadas atrás, a maioria dos casos de crianças identificadas com transtorno autista era diagnosticado em torno dos 3 anos. Hoje, os esforços são no sentido de qualificar os profissionais de saúde para identificar, ainda durante o primeiro ano de vida, indicadores de risco.

 

melanie-klein-brinquedos

 

Luciana: Por que o diagnóstico de transtornos do espectro autista (TEA) vem crescendo no mundo todo?

Maria Cecília: Em primeiro lugar porque aumentou o número de crianças com TEA e com isso os pesquisadores começaram a buscar sinais precoces desses transtornos. Estudam-se filmes caseiros de crianças diagnosticadas com TEA e a qualidade das interações intersubjetivas entre pais e bebês, assim como a disponibilidade emocional materna.
Antigamente, os pediatras só encaminhavam quando os sintomas se mantinham após os 3 anos e alguns, após os 6 anos ou quando os pais identificavam algo estranho e comparavam seus filhos com as outras crianças da escola. Hoje, as pesquisas mostram que a plasticidade cerebral permite que intervenções precoces transformem neurológica e emocionalmente quadros que mais tarde se tornariam crônicos.

Ana Maria: A hipótese de um aumento crescente de casos de TEA é uma questão em aberto, inclusive entre os estudiosos.

Antes de mais nada é importante considerar que o próprio quadro patológico a ser considerado ficou maior. Não falamos mais em autismo infantil precoce (conforme definido por Kanner em 1943), mas em transtornos do espectro autista (TEA), o que implica uma gama maior de situações a serem consideradas, com intensidades, dificuldades e possibilidades prognósticas diferentes.

É certo também que o aumento crescente de estudos sobre o tema vem, cada vez mais, nos capacitando a identificar as diversas características dos quadros de TEA.

 

Luciana: Como veem a influência do mundo atual nos sintomas das crianças?

Maria Cecília: Cada vez mais cedo as crianças são expostas a brinquedos e atividades tecnológicas em detrimento do contato humano e algumas acabam estabelecendo uma preferência maior por objetos do que pela interação com seres humanos, dificultando o desenvolvimento de relações intersubjetivas e a mediação dos sentimentos e emoções.
A falta de redes parentais nas cidades grandes também deixa as mães muito desamparadas com a chegada de um bebê. Tanto os pais quanto os avós e comadres são importantes para embalar a dupla mãe-bebê nos momentos de estresse da mãe.
A disponibilidade emocional materna entra em disputa com as demandas cotidianas e contemporâneas, além das demandas profissionais, exigindo que as crianças se tornem rapidamente independentes e autônomas. Essa precocidade, muitas vezes, se transforma em sintomas como: fobias, obesidade, ecoprese, retraimento ou momentos de explosividade.

Ana Maria: O estilo e ritmo frenético da vida nas grandes cidades têm, sem dúvida, influenciado a forma como se estruturam as relações interpessoais no mundo contemporâneo. As relações tem se caracterizado, cada vez mais, pela falta de intimidade e a dificuldade de se estabelecer relações recíprocas, estáveis e duradouras.

As intensas exigências feitas aos homens e mulheres profissionais, que trabalham fora de casa durante longas horas por dia e pouco convivem com seus filhos, têm dificultado o estabelecimento de relações mais íntimas entre pais e filhos. Os pais ficam muito afastados das características do mundo infantil e suas necessidades. As crianças são logo entregues aos cuidados de profissionais (enfermeiras, babás, médicos, e professoras) que são percebidos pelos pais como os especialistas, enquanto eles se sentem ignorantes sobre seus filhos e inseguros na sua capacidade de educarem e exercerem as funções parentais com liberdade e sem culpa.

Quando surgem problemas, a demanda dos pais é por precisas orientações especializadas dos profissionais. A fantasia é de que os profissionais detém o conhecimento. Muitas vezes observamos pouca compreensão e disponibilidade dos pais para o desenvolvimento de aprendizado lento mas apropriado, que só se dará a partir das relações íntimas e compartilhadas com seus filhos.

As novas configurações familiares, também, criam dificuldades para os pais contarem com a presença próxima de suas famílias de origem na construção de uma rede ampliada de apoio familiar. É cada vez maior a solidão dos pais ao enfrentar os inevitáveis desafios da parentalidade.

O estilo de vida contemporâneo tem também, cada vez mais, influenciado pais e crianças no uso intenso e indiscriminado de equipamentos eletrônicos como objetos preferidos para o brincar. Essa prática afasta as crianças do contato e das trocas humanas fundamentais que ocorrem no convívio priorizado com pessoas, e não com objetos. O desenvolvimento nas crianças do interesse, sensibilidade e capacidade comunicativa essenciais para uma boa interação social vai ficando prejudicada.

 


 

I Luciana Saddi é psicanalista, mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP e membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).

II Maria Cecília Pereira da Silva é Psicanalista, membro efetivo, analista de criança e adolescente e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, filiada à International Psychanalytic Association. Especialista em Psicopatologia do Bebê pela Université Paris XIII. Pós doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Membro do Departamento de Psicanálise de Criança e Professora do Instituto Sedes Sapientiae. Coordenadora da Clínica 0 a 3 do Centro de Atendimento Psicanalítico da SBPSP.  

III Ana Maria Vieira Rosenzvaig é psicóloga formada pela UFRJ, membro filiado ao Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, mestre em Estudos Psicanalíticos pela University of East London – Tavistock Clinic. Atualmente, membro do corpo editorial da Revista Brasileira de Psicanálise.