Conversa de Luciana Saddi* com José Martins Canelas Neto, psicanalista e editor da Revista IDE/59I, que tem como tema: A morte da palavra?
Luciana Saddi: Quais caminhos você e sua equipe percorreram para chegar ao tema dessa edição?
R – Sabíamos das conversas de Freud com a morte e a finitude, amplificadas por situações objetivas, como a morte de seu pai, de sua filha, Sophie, durante a primeira guerra, e a eventualidade de sua própria morte. Em textos como “Introdução ao narcisismo”, “Luto e melancolia”, “Além do Princípio do prazer” e “Transitoriedade”, só para citar alguns, os temas relacionados à finitude, à incompletude, ao desligamento, são enfrentados. Mesmo receoso diante da morte, Freud convocava à conversa, assim como fazia com os demônios.
Diz-se também que a palavra é a morte da coisa: narrar seria desprender-se, apartar-se, privar-se. No texto clássico de Benjamin, O Narrador , o autor entende o narrador como alguém que conta o que extrai de sua experiência vivida, o que pressupõe um outro que escuta. Nessa narrativa, a palavra é viva, encarnada. Não é mera informação, mas experiência, e ao ser veiculada tem um potencial transformador: transforma quem narra, quem escuta e o próprio relato. A formulação dessa ideia, que alude à morte das narrativas e dos narradores, nos aproximou do tema: Morte da palavra? Com uma interrogação para deixar a questão aberta aos autores.
Luciana: No romance, De verdade, do escritor húngaro Sandor Marai, há um personagem escritor, que em meio aos bombardeios e destruição da cidade de Budapeste diz para sua amante que as palavras perderam o sentido, já não servem para mais nada, tanto faz falar sardinha, morte ou batatas. O que esperar do mundo e do homem sem a palavra? Quais as ressonâncias e dissonâncias entre essa afirmação e a IDE/59?
R – Cito aqui um trecho de nossa carta-convite que me parece abordar essa questão: "Perdi a confiança na linguagem. As armas significam o que dizem." Essa frase foi dita por um oficial da SS na Conferência de Wannsee (onde sabemos, foi oficializada a "solução final"). Anos depois, sobre o mesmo período e sobre sua própria experiência da guerra escreve o poeta alemão Paul Celan:
"Só uma coisa permanecia ao alcance, próxima e segura em meio a todas as perdas: a linguagem. Sim, a linguagem. Apesar de tudo, permaneceu segura contra as perdas. Atravessou a falta de respostas, em meio a um silêncio aterrorizante, atravessou as várias escuridões do discurso mortífero. E seguiu. Não me ofereceu palavras para descrever o que acontecia, mas prosseguiu. Prosseguiu e ressurgiu, 'enriquecida' por tudo isso."
O poeta alemão guarda um último resto de esperança que se funda na própria existência da linguagem humana, a qual pode sobreviver à destruição da Guerra. Nesse sentido, ele é um pouco mais otimista que o personagem de Marai.
Luciana: qual o lugar da palavra numa sociedade baseada na informação, onde a virtualidade e a imagem imperam?
R - O mundo atual, marcado por excessos, velocidade, instantaneidade e o imperativo da imagem, pode nos aproximar da experiência da morte da palavra viva, forjada na angústia e na elaboração. Assim, a vida e seu sentido podem se esvair numa sucessão de atos desprovidos da dimensão simbólica da palavra, num eterno presente. Espécie de abolição do tempo e da história, sem futuro e sem passado. O que também nos leva a pensar numa crise da ética, recurso que a humanidade dispõe contra o que Arendt chamou de “banalidade do mal”. Mas, por outro lado, os enormes recursos tecnológicos de comunicação atuais estão criando uma vasta ampliação das redes de relações virtuais entre os homens. Isso não só facilita o trânsito das informações, mas também abre novos debates que seriam impossíveis anteriormente.
Também trazemos na revista uma sessão dedicada à fotografia, na qual podemos ver o quanto a imagem faz falar, narrar. A imagem em si mesma não mata a palavra.
Luciana: uma das primeiras pacientes da psicanálise chamou o tratamento de cura pela palavra, essa é uma afirmação válida hoje? Se a Psicanálise opera uma cura por meio das palavras, como isso ocorre, que tipo de palavra é essa que tem o poder de curar?
R – Sim a psicanálise é uma cura pela palavra. Mas devemos entender cura no sentido do processo psicanalítico que se estabelece entre analisando e analista. A conversa analítica é muito diferente da conversa que estamos habituados em nosso dia a dia. Na análise, o analisando deve, na medida do possível, seguir a regra fundamental de falar tudo aquilo que lhe vem à mente durante a sessão. É a associação livre. E o analista também tem uma escuta diferente daquela da vida comum, trata-se de uma escuta em atenção flutuante. Além disso, o analista não estabelece um diálogo interpessoal comum, mas deve guardar uma certa reserva de silêncio e de neutralidade benevolente. Nesse diálogo diferente que é o diálogo na sessão, o paciente vai transferir para a pessoa do analista certos aspectos que tem a ver com sua própria história de vida. Por meio das palavras, com seus duplos sentidos e seu potencial polissêmico, novos sentidos de seu funcionamento e de de seu lugar em sua história vão aparecer no tratamento. O artigo de Flavio Carvalho Ferraz - Vida e morte da palavra , faz uma minuciosa e preciosa revisão dessa questão dentro da psicanálise. É uma excelente introdução ao aprofundamento desse tema tão vasto, quanto complexo.
* Luciana Saddi é psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SP), mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP e autora dos livros de ficção O amor leva a um liquidificador (Ed. Casa do Psicólogo) e Perpétuo Socorro (Ed. Jaboticaba). Assinou por mais de dois anos a coluna Fale com Ela na "Revista da Folha". Representante do Endangered Bodies no Brasil.
I Publicação semestral sobre Psicanálise e Cultura da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.
SERVIÇO: Lançamento da revista IDE/59, Morte da Palavra?
Data: 21/03/2015, sábado, às 14:00hs.
Local: Av. Dr. Cardoso de Melo, 1450/9º andar - Sala E. São Paulo - SP
Debate aberto ao público com a presença de:
Silvana Rea (Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e Editora da Revista Brasileira de Psicanálise).
Flávio Carvalho Ferraz (Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e livre-docente pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo).