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"As pessoas duvidam muito que adolescentes são capazes de ter ideias próprias”: Inquietações sobre as gritantes diferenças entre educação e cativeiro

(Ao longo do texto, as palavras que remetem à importância da problematização sobre as ideias que expressam foram escritas em itálico)

 

 Irresponsabilidade, impulsividade, inconsequência, imaturidade: adolescentes precisam ser alvo de constante controle, atenção e orientação, porque ainda não aprenderam a fazer escolhas de forma sensata.

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Descobertas, diversões, prazeres, experimentações: A adolescência é o momento de aproveitar intensamente cada momento, sem pensar no depois. Sem as chatices das obrigações e cobranças da vida adulta, podem viver sem preocupações e desfrutarem de festas, baladas, viagens, passeios, com muitas amizades e paqueras.

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A juventude está perdida! São devastadores os efeitos da promiscuidade e da ausência de perspectiva de futuro! Não querem saber de esforços! Mal saíram das fraldas e já engravidam! Não há juízo! Não há valores morais! Não há respeito!

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O tênis certo para as suas aventuras. O celular top para ser popular. Make de diva para arrasar na balada. Dez acessórios para tornar a volta às aulas mais emocionante. Guia teen para turbinar seus fins de semana.

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Adolescentes são influenciáveis. Adolescentes não resistem à pressão do grupo. Adolescentes não entendem o valor do esforço. Adolescentes são rebeldes. Adolescentes estão em ebulição hormonal. Adolescentes só pensam em sexo. Adolescentes acham que sabem tudo. Adolescentes não pensam no depois. Adolescentes pensam que são onipotentes. Adolescentes são difíceis. Adolescentes são aborrescentes.

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“A adolescência não é só o conjunto das vida dos adolescentes. É também uma imagem ou uma série de imagens que muito pesa sobre a vida dos adolescentes”, afirma Contardo Calligaris (p. 35) no livro A Adolescência. Em meio há tantas imagens que oscilam entre alardes sobre os riscos e exaltação dos prazeres, entre clamores por controle e convocações para que se divirtam, entre o temor da rebeldia e a condenação do conformismo e entre os pesadelos do potencial destrutivo da inconsequência e os sonhos de liberdade, o que há em comum é a ideia de que a transição entre a infância e a vida adulta carregaria traços uniformes, facilmente identificáveis, que categorizaria e explicaria as diversas experiências de adolescentes em um grupo homogêneo de traços pré-definidos, que podem ser resumidos no início padrão para as frases “Adolescentes são...

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Quando me perguntam sobre uma recomendação para quem começará a trabalhar com adolescente, logo penso na importância de não nos deixarmos enganar pelas imagens uniformes sobre quem adolescentes são ou deveriam ser.

Nem a imagem da rebeldia transgressora, nem a imagem da passividade desinteressada; nem a imagem do prazer sem limites, nem a imagem da aborrescência rabugenta: nenhum estereótipo facilita a compreensão e a comunicação, ao contrário.

É ilusório insistirmos que exista um modelo único, as adolescência são tão múltiplas e tão singulares quando as experiências, desejos, olhares e vozes de quem as vive.

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“A carga das expectativas e fantasias sobre a adolescência pesa sobre os ombros dos protagonistas, faz deles personagens do sonho alheio quando, mais do que nunca, precisam ser autores de sua biografia”, afirmam Diana Corso e Mário Corso no capítulo Ficções sobre a adolescência do livro A Psicanálise na Terra do Nunca: Ensaios sobre a fantasia. Os autores chamam a atenção sobre como o olhar e a escuta para adolescentes precisa ir além de romantizações ou amedrontamentos. As emoções, os conflitos, as dúvidas, os anseios e as conquistas de adolescentes são vividos de modos singulares, nos quais a busca por expressão e pela invenção de si demanda reconhecimento e valorização, ao invés do apagamento que resulta de imagens estereotipadas e generalizantes.

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O peso das imagens da adolescência são também discutidos por Rosa Fischer na tese Adolescência em discurso: Mídia e produção de subjetividade. A autora aborda sobre como a construção publicitária da imagem de adolescentes como teens faz parte de um processo em que o consumo é situado como importante definidor de identidades.

Trata-se de uma construção bastante atravessada por marcadores de raça e etnia, gênero e classe social: Aqueles e aquelas que não correspondem à fatia de mercado almejado são diminuídos(as), não são chamados(as) pelos discursos midiáticos de teens, nem mesmo de adolescentes, mas de menores.

A voracidade punitiva das reivindicações pela redução da idade penal somada ao descaso diante de como no Brasil são os jovens negros que mais são assassinados, todos os dias, evidencia como não é possível pensarmos hoje sobre a adolescência sem considerarmos como é excludente o modo como a adolescência é predominantemente representada.

Voltaremos a essa questão em um próximo texto. Neste gostaríamos de nos focar nas experiências e desafios do trabalho com adolescentes em contextos educativos.

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Surpresa é uma palavra que condensa muito do que sinto quanto trabalho com adolescentes. Tenho lembranças de reações que me surpreenderam, de dúvidas que me surpreenderam, de relatos que me surpreenderam, de inquietações que me surpreenderam, de propostas que me surpreenderam. E a surpresa me fascina. Sei que mesmo que eu repita o mesmo planejamento, sobre um mesmo tema, com os mesmos objetivos e as mesmas atividades: nada acontecerá da mesma forma. Me fascina como podem ter a mesma cidade, morar na mesma cidade e estudarem na mesma escola, mas não darão as mesmas respostas, não farão as mesmas perguntas, não se interessarão pelos mesmos temas e, sem dúvidas, não terão as mesmas ideias. Por isso me parece tão esquisita a insistência em começar uma frase com “Adolescentes são...”. Trabalhar com adolescentes é trabalhar com formas de expressão tão diferentes e tão interessantes que não há desperdício maior que tentar encaixá-las em um categorização superficial de adolescência.

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Romper com categorizações superficiais, redimensionar o campo de possibilidades, flexibilizar o que aparenta ser rígido e imutável, trazer diferentes perspectivas que desestabilizem a ideia de que o conhecimento possa vir em uma única e uniforme versão: ampliar o modo como as pessoas conhecem e compreendem o mundo, assim como o modo como conhecem e compreendem a si mesmas e um dos desafios mais fascinantes da educação. Como defende Eliane Brum no vídeo Ecos da cidade na voz dos jovens: “(...) para mim, o principal papel da escola e do professor é o de quebrar a história única da criança e do adolescente, ajudando meninos e meninas a assumir a responsabilidade pela narrativa da própria vida, o que significa encontrar uma voz própria. (...) A escola é, ou deveria ser, um espaço da invenção e também da invenção de si mesmo”.

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Pensando bem, surpresa não é apenas uma palavra que condensa muito do que sinto apenas nas minhas experiências com adolescentes, mas também de uma sensação muito presente nas minhas experiências como professora. Me surpreende como dar aulas é algo que transforma.

Conversando com outros professores e professoras, vejo como é comum a sensação de que nunca chegamos a um dia de trabalho sabendo como sairemos.

Quando começamos uma aula, não sabemos como ela se concluirá. Quando planejamos uma aula, não sabemos como o tema planejado se desenvolverá, como as perguntas, comentários, reações e a participação da sala como um todo darão vida ao tema proposto.

A surpresa diante de quão vivo um tema pode se tornar com os múltiplos olhares e múltiplas vozes que encontramos em uma aula é uma das grandes motivações para quem ensina. Ensino e aprendizado não acontecem apenas no que é dito, no que é explicado, mas também no que é ouvido, no que é compreendido, nas relações.

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Fico surpresa, e desta vez de forma muito negativa, com como alguém consegue honestamente acreditar que o processo de ensino e aprendizado pode acontecer de forma unilateral, como se os alunos e alunas estivessem em uma posição de completa passividade e imobilidade diante de professores e professoras que têm como plano impor visões de mundo, forçar a adesão a determinadas convicções, obrigar que todas as pessoas pensem da mesma forma.

Segundo tal visão de uma silenciosa e indefesa passividade, alunos e alunas não seriam pessoas com pensamentos próprios, com desejos próprios, capazes de ter as próprias opiniões e expressá-las com vozes próprias...

É algo que realmente me inquieta... Como alguém consegue honestamente defender que alunos e alunas não passam de receptáculos vazios que são colocados estrategicamente nas escolas para que professores e professoras vomitem suas ideias?

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A imagem da professora que vomita lixo na cabeça do jovem inocente foi encontrada na página do facebook do movimento Escola Sem Partido e analisada por Fernando Penna na matéria O ódio aos professores.

Diante da imagem, poderíamos problematizar a forma depreciativa como a professora que representa a Escola Pública é representada, assim como poderíamos analisar criticamente a ideia de que o que ela transmite ao aluno é um lixo. Poderíamos também esclarecer que a abordagem sobre sexualidade e gênero visa o reconhecimento e a valorização das diferenças, o que inclui as diferentes crenças e práticas religiosas, sendo um espaço para que questões diversas relacionadas às experiências vividas por adolescentes possam ser tema de diálogo e reflexão, algo bem diferente das acusações de que seria contra valores religiosos e que seria sobre “sexo, sexo, sexo, sexo, sexo”. É sobre sexo também. É sobre sexo, sobre corpo, sobre desenvolvimento, sobre saúde, sobre prazer, sobre relacionamentos, sobre direitos, sobre combate à discriminação e à violência. Enfim, neste texto não nos focaremos nas acusações sobre a suposta ideologia de gênero a que a imagem se remete, que discutimos em um texto anterior. Neste texto, gostaríamos de nos focar no fato de o aluno ter sido desenhado com uma cabeça cortada, vazia, sendo nomeado como um jovem inocente.

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Escola sem Partido” é o nome dado para o projeto que tem sido base para a elaboração de propostas de leis federais, estaduais e municipais, que, a partir da alegação da defesa da neutralidade de ensino e do combate à doutrinação ideológica visa implementar uma série de medidas de fiscalização, denúncia e punição de professores e professoras que abordem nas salas de aulas questões que não correspondam aos valores morais (que estão longe de ser neutros e não ideológicos!) dos grupos que o elaboraram.

O projeto prevê que sejam afixadas nas portas de todas as salas de aula um cartaz que lista os “Deveres do Professor”. A imagem abaixo apresenta o primeiro item:

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Audiência cativa.

É assim que os alunos e alunas são representados pelo projeto.

Ao procurarmos as palavras cativa e cativo no dicionário, temos:

1 Que ou aquele que perdeu a liberdade; encarcerado, preso, prisioneiro, recolhido à prisão.

2 Diz-se de ou aquele que foi feito prisioneiro de guerra e obrigado à servidão.

3 Que ou aquele que foi submetido à escravidão; escravo (...).

Diante da ideia de que alunos e alunas seriam uma audiência cativa, podemos reconhecer como o Escola Sem Partido é um projeto que pressupõe uma escola sem liberdade, uma escola que submete, uma escola que escraviza.

É pressuposta uma escola sem voz, sem vida, sem desejo, sem reações.

A escola como um espaço de aprendizado, de interesse, de envolvimento, de possibilidades de ação e transformação é apagada, em um discurso que supostamente defende a neutralidade.

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Na matéria Ameças, ofensas e sindicâncias, da Agência Pública, professores e professoras relatam sobre experiências de cerceamento e censura por trabalharesm nas aulas questões que contrariam os valores conservadores: sobre o enfrentamento à violência contras as mulheres, à homofobia e à transfobia; sobre como o marxismo compreende a luta de classes e sobre a importância da mobilização política diante da necessidade de transformações na educação.

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Propõe o projeto: “São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes”.

O que está sendo reivindicado é o silenciamento. Silenciamento das pessoas que educam. Silenciamento das pessoas que aprendem. Silenciamento de jovens que sofrem o apagamento da dimensão de sujeitos das próprias histórias, de sujeitos com voz própria, com ideias próprias, com desejos próprios, para serem reduzidos(as) à representação de uma inocente passividade, de uma audiência cativa. Silenciamento do quanto a educação é, sim, uma questão política. Silenciamento de como convicções religiosas e morais são múltiplas, não podem ser reduzidas a um versão únicas, e sobre como o diálogo sobre as múltiplas convicções não é uma forma de confrontar valores, mas de promover a possibilidade de que os valores sejam reconhecidos e vividos de forma mais autônoma, ativa e refletida.

Silenciar a reflexão sobre valores dominantes sob o pretexto de neutralidade é uma tentativa de silenciar vozes que têm denunciado o quanto tais valores são muitas vezes naturalizados e colocados como justificativa para manter e legitimar relaçações de opressão. Por isso, a busca por silenciar os diálogos nas escolas é também a busca por silenciar o desejo de transformação.

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A imagem de jovens inocentes que, como audiência cativa nas escolas, sofrem doutrinação ideológica sob a forma de uma lavagem cerebral tem sido evocada justamente em um momento em que foram os jovens alunos e alunas que protagonizaram um movimento de luta em defesa da escola pública, com reivindicações por transformações na educação em diferentes cidades e estados e com conquistas como o impedimento do fechamento de escolas e precarização do ensino proposto por meio do eufemismo de reorganização escolar pelo governo do estado de São Paulo.

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“O objetivo é acabar com o senso crítico dos alunos. Como nossa geração vem se fortalecendo politicamente, isso acaba assustando esses políticos”;

“Acho que os professores têm, sim, um papel na formação política dos alunos, mas é diferente debater e manipular”;

“Eu acho uma ingenuidade a gente achar que um aluno de ensino médio pode ser doutrinado por um professor. Como se a gente fosse um quadro branco. A gente não é”;

“As pessoas duvidam muito da capacidade do aluno de pensar por si próprio”;

“Quanto tempo depois vão querer proibir os estudantes de debater fora da sala também?”.

As falas são trechos das entrevistas realizadas pela Agência Pública com estudantes secundaristas de Alagoas, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Fortaleza, apresentadas na matéria Escola Sem Partido e a caça às bruxas na sala de aula.

Com as respostas trazidas pela matéria, é possível perceber a gritante diferença entre os alunos e alunas cativos e passivos pressupostos pelo projeto e as vozes vivas, ativas e criativas que a educação que valoriza a reflexão e a expressividade pode promover. É possível perceber a gritante diferença entre promover o diálogo, o compartilhamento de ideias e doutrinar ideologicamente. É possível, também, perceber como é desolador o fato de que enquanto são gritantes as mudanças necessárias para que uma educação voltada para a promoção da autonomia e da criatividade seja de fato possível, nossa luta precise ser direcionada para algo tão inacreditável quanto a resistência ao silenciamento.

São muitos os professores, professoras e jovens que têm se mobilizado não apenas para que a educação avance, mas para resistirem à desvalorização da escola, ao sucateamento, a quantos direitos têm sido perdidos. Entre os direitos que lutamos para não perder, está o direito à reflexão crítica, está o direito ao debate de ideias, está o direito ao reconhecimento do vínculo entre educação e política. Ao surpreendente desafio de trabalhar com adolescentes e suas múltiplas ideias, múlitplos desejos, múltiplos olhares, múltiplas expericências e múltiplas vozes infelizmente nos deparamos hoje com o fato de que precisamos insistir e resistir à gritante pressão por silenciamento. Precisamos resistir e insistir no direito à voz.

 

 


marcela pastanaMarcela Pastana é psicóloga e mestre em Educação Escolar pela UNESP. Professora do curso de psicologia do IMES-São Manuel. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisa em Sexualidade, Educação e Cultura- GEPESEC e coordenadora do Grupo de Discussões sobre Sexualidade e Mídia. Coordenadora do Núcleo de Sexualidade e Gênero do CRP/SP - subsede Bauru.
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