A liberdade e os encontros

future

 

Imagine um futuro em que as mulheres são impedidas de trabalhar, de ter o próprio dinheiro ou qualquer posse, são proibidas até mesmo de ler. Houve a tomada do governo por um regime totalitário e teocrático que, com a justificativa das baixas taxas de totalidade, obriga as poucas mulheres que ainda são férteis a tornarem-se aias, servindo a casais das classes mais altas para engravidarem e depois entregarem as crianças que nascerem. Mensalmente, a partir do cáculo dos dias do período fértil, devem se submeter ao que é chamado de “ritual”, com procedimentos que seguem um trecho bíblico, em que a aia deita no colo da esposa enquanto o marido a penetra com a finalidade de engravidá-la. O trecho bíblico, extraído do livro Gênesis, é:

“Raquel que não dava filhos a Jacob, teve Raquel inveja da sua irmã, e disse a Jacob: Dá-me filhos, ou senão eu morro. Então se acendeu a ira de Jacob contra Raquel e disse: Estou eu no lugar de Deus, que te impediu o fruto de seu ventre?

E ela lhe disse: Eis aqui a minha serva, Bilha; Entra nela para que tenha filhos sobre os meus joelhos, e eu, assim, receba filhos por ela”.

            Neste futuro em que o destino das mulheres é restrito exclusivamente a gerar e criar filhos(as), mulheres que se relacionam com mulheres são condenadas como “traidoras de gênero”. Entre as punições estão a morte, para as mulheres que não são férteis, e a extração do clitóris, para que as mulheres férteis não se esqueçam que a única função de seus corpos é a gestação, sem tolerância alguma para qualquer forma de desejo ou de prazer. A mutilação genital é justificada, ainda, como uma forma de “proteção”, para que a mulher fértil que continua viva não sofra tentações que destoem de sua missão sagrada.  

            A série é baseada no livro O conto de aia, publicado por Margareth Atwood em 1985. Na entrevista sobre a atualidade das questões abordadas, a autora afirmou que todas as violências e opressões narradas não foram criadas para a história, mas sim, baseadas em violências e opressões que de fato acontecem, hoje, em diferentes lugares do mundo.

            Uma das muitas questões perturbadoras que o livro e a série podem suscitar é sobre a importância da liberdade, com reflexões sobre o que vivemos e/ou reconhecemos como liberdade. Em diferentes momentos da narrativa distópica, há a afirmação de que destinar as mulheres exclusivamente à geração de crianças seria uma forma de torná-las livres, livres para cumprirem seu potencial biológico e serem valorizadas por esse potencial. A argumentação é que antes não haveria liberdade: tão presas a padrões de beleza, a idealizações românticas, a expectativas de prazeres e performances sexuais, as mulheres teriam sido enganadas como se vivessem em meio a variadas oportunidades enquanto estavam submetidas a variadas repressões. A fala de tia Lydia, uma das personagens responsáveis por treinar as aias para fuas funções de reprodutoras, é ilustrativa dessa forma de pretensamente “defender” a liberdade:

“Existe mais de um tipo de liberdade, dizia tia Lydia. Liberdade para: a faculdade de fazer ou não fazer qualquer coisa, e liberdade de: que significa estar livre de alguma coisa. Nos tempos da anarquia, era liberdade para. Agora a vocês está sendo concedida a liberdade de. Não a subestimem. (. . .) Aquelas mulheres podiam se soltar e se perder. Elas pareciam ser capazes de escolher. Nós parecíamos capazes de escolher naquela época. Éramos uma sociedade que estava morrendo, dizia tia Lydia, de um excesso de escolhas”.

            Poder escolher como uma condenação, poder escolher como um risco de perder-se, privar as mulheres de escolhas para protegê-las, livrá-las da liberdade, já que a “liberdade para” seria algo perigoso.

v:shapetype id="_x0000_t75" coordsize="21600,21600" o:spt="75" o:preferrelative="t" path="m@4@5l@4@11@9@11@9@5xe" filled="f" stroked="f"> Quantas vezes a associação entre liberdade e perigo é evocada, com alardes sobre possíveis consequências devastadoras, para acusar o desejo de mudanças no campo da sexualidade e das relações de gênero como algo nocivo e que deve ser combatido? Foi sobre isso que pensei quando assisti as cenas a seguir:

 

cena1

cena2

cena3

cena4

Tais cenas me levaram a escrever este texto, na busca por valorizar uma liberdade relativamente simples, mas que se revela tão potente: a liberdade dos encontros.