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A Psicanálise Invertida

A Psicanálise envelheceu?

Ainda faz algum sentido no mundo contemporâneo?

São perguntas frequentes, hoje, para muitos psicanalistas. Nossa disciplina sempre esteve, é verdade, sob o bombardeio de indagações como estas desde que nasceu, no início do século XX. Foi posta permanentemente no tribunal da ciência e dos costumes, sob o exame crítico tanto do público fora dos consultórios e dos divãs, quanto dos representantes da ciências da natureza e também dos próprios praticantes no interior do exército do chamado "movimento psicanalítico", como o nomeava o próprio Freud.

Esse tem sido seu destino polêmico. Um olhar de suspeita recai sobre a disciplina -- paradoxalmente -- especializada em suspeitar de tudo -- do senso comum, do estabelecido, da lógica compartilhada e do tempo dos relógios. A principal suspeita sobre ela é a de que morreu e não sabe.

Nós, os psicanalistas, membros desse exército, temos a obrigação de nos questionar regularmente, de tempos em tempos, sobre a atualidade da nossa disciplina. Às vezes o fazemos até com mais severidade dos que os civis em geral.

Vou tentar responder brevemente às duas perguntas formuladas.

(Usarei três modelos:

  1.  um que se destina a percorrer o eixo histórico do entorno da psicanálise, isto é, da sociedade que lhe deu origem (a sociedade moderna) e prossegue em suas mudanças cada vez mais aceleradas;
  2.  o outro, consiste em examinar as mutações no interior da própria disciplina e a sua evolução;
  3.  o terceiro, em estabelecer o nexo epistemológico que relaciona ambos os eixos e descreve criticamente, ao modo de hipótese, o estado atual da psicanálise e localiza o lugar central do pensamento de Winnicott.)

A maior onda de desconfiança de que a psicanálise envelheceu em relação à sua época e à sociedade começou logo após a Segunda Guerra Mundial, sobretudo nos anos 50 e 60. Foi, portanto, depois do "período heroico" de Freud e dos pioneiros. Aquela época inicial foi a da constituição da "jovem ciência", como dizia Freud, de Ferenczi, Abraham, Eitingon (que criou o primeiro molde de “formação analítica") e também o período das primeiras dissidências, Jung, Stekel, Adler, etc. As dissidências, a meu ver, foram tentativas, algumas canhestras, de apresentar um antídoto ao reducionismo do período inicial.

Fala-se muito da virada freudiana da Primeira Guerra, quando ele introduziu o conceito de Instinto (Trieb) de Morte (Tod), mas não se fala muito do momento que antecede a II Guerra Mundial, em que Freud vai para Londres, morre, e o movimento se dispersa. Muitos discípulos partem em fuga, no que se chamou de “diáspora" imposta pelo nazi-fascismo.

Já então, havia sinais de mudanças e traços de aparentes abalos nos fundamentos da disciplina como um todo, apesar da declarada adesão a Freud. Karl Abraham, Ferenczi e Melanie Klein são os melhores exemplo disso. Fairbairn também começou nesse interregno. Surgem os pontos de partida para o teoria das relações de objeto. Anna Freud – involuntariamente--, Hartmann, Ernest Kris e Loewenstein dão início aos primórdios do que seriam as bases da Psicologia do Ego norte-americana, tão polêmica, mas dominante nos EUA durante os anos 50 e 60.

A partir daquela época, os autores de ciências sociais e de teoria da cultura passaram a falar seriamente do "envelhecimento" da psicanálise, tanto que isso levou depois Lacan, em conseqüência, a decretar a morte de uma psicanálise que condensou na sua exumação da Psicologia do Ego dos EUA. Não falo daqueles que só estavam interessados em denegrir a psicanálise ou que faziam parte de uma guerra ideológica e não científica. Mas falo dos autores sérios para os quais o conceito de "envelhecimento" quer dizer "a tendência a uma discrepância crescente que se abriria entre as condições de partida sociais e culturais da psicanálise e a circunstância social da atualidade" (Axel Honneth).

Aquilo que Freud e seus discípulos tinham outrora como pressupostos nas relações de socialização quando se puseram a construir uma teoria psicanalítica da formação do Eu, "já não existiria ou se encontraria tão pouco na realidade da sociedade que continuou a se desenvolver. Os conceitos originais tinham perdido toda a sua força explicativa e, de certo modo, haviam envelhecido". O mesmo se diz hoje sobre a psicanálise diante da emergência das condições de uma sociedade pós-industrial, que teria gerado um sujeito irredutível aos conceitos freudianos clássicos.

Os primeiros autores relevantes a formularem essa tese do envelhecimento foram Theodor W. Adorno e Herbert Marcuse ,no final dos anos 50 e início dos 60. Os dois, coincidentemente, afirmaram que um processo social de "destruição da autonomia individual" podia ter tornado obsoleta a representação psicanalítica de um conflito intrapsíquico entre as exigências pulsionais e o princípio de realidade.

A ideia central coincidia em vários pontos com a tese de David Riesman do "caráter dirigido a partir de fora". A tese é simples: sobre o indivíduo enfraquecido a respeito da socialização atuam as instâncias de controle social de maneira tão imediata (administração da vida nas empresas e no trabalho, a publicidade, a televisão, o cinema, a indústria cultural, a educação para a eficiência no êxito, o consumo irrefreável, etc.), sem que haja nenhuma resistência oposta. Em consequência, não se poderia falar de "aquisição de forças do Eu" mediadas pelas identificações familiares e o complexo de Édipo.

Essa tese do "fim do indivíduo" ganharia força novamente a partir dos anos oitenta por obra do pós-estruturalismo, ainda que não como uma proposta de diagnóstico sociológico da época, mas como uma premissa filosófica. A tese agora se inverte praticamente em seu contrário. Não predomina mais -- como no diagnóstico sociológico da época-- a figura do indivíduo totalmente adaptado, incapaz de autonomia, mas a ideia de uma intensificação da individualidade por meio da diversificação interna da identidade. Passamos do individuo sem identidade para o de identidade exuberante e difusa, inclusive sexual. Essa noção pode facilmente ser encontrada em Foucault e outros autores pós-estruturalistas.

Em poucas décadas, passamos da tese da perda da autonomia do sujeito para a inexistência do sujeito, ou, pelo menos, de uma personalidade pós-moderna, fracionada ou fractal. Essa personalidade deveria poder dispor , como se estivesse brincando e sem nenhuma dificuldade, de tantas identidades quantas fossem possíveis e desejáveis que se começa a vislumbrar no horizonte o ideal de um sujeito "múltiplo".

Ao mesmo tempo, surgiu a teoria crítica da espetacularização da sociedade, com Guy Debord; tudo virou o espetáculo da alienação. Ela antecipou, em 1967, tudo o que aconteceria com a sociedade do fluxo das imagens a serviço do consumo. Como dirá depois o filósofo Michel Seres, o saber científico e tecnológico não se colocou apenas a serviço da infraestrutura que constitui a sociedade, mas o saber tornou-se, ele próprio, a nova infraestrutura.

Esses diagnósticos modificados da nossa época vêm acompanhados, porém, da constatação crítica de que os novos desenvolvimentos da sociedade trazem consigo um "envelhecimento" do programa teórico e prático da psicanálise O que nos interessa aqui, contudo, não é descrever as teorias da identidade sociocultural contemporânea, mas como a psicanálise tem-se comportado em seu arsenal teórico interno diante das mudanças externas.

A substituição da ideia de que o indivíduo estaria aderido às relações sociais coativas, pela noção de sujeito no mínimo múltiplo e fragmentado, sugere que a psicanálise está perdendo o seu arsenal categorial procedente do início do século XX. Significaria também a obsolescência de uma ideia implícita de saúde psíquica, sua orientação normativa de integração das capacidades do Eu (Self) a fim de obter um domínio consistente da realidade. Representaria ainda a constatação de que a manutenção de seus próprios conceitos, tidos como ultrapassados, contribuiriam para o seu envelhecimento rápido.

Houve, sem dúvida, mutações internas na teoria e na prática psicanalíticas -- se para a sua sobrevivência ou sua liquidação, é o que precisamos saber. E talvez ainda não saibamos. O fato é que algumas dessas mutações coincidem com as mutações na sociedade e na cultura. (Uso cultura como intercambiável com civilização, como fazia Freud.)

Penso que essas mutações, como, por exemplo, a passagem da psicanálise clássica do indivíduo solitário pressionado pela sociedade -- de Freud, Reich, etc.-- para as teorias das relações de objeto, deram-se dentro daquelas duas linhas de limitação de fronteira epistemológica: uma a do reducionismo e do pensamento dicotômico; acrescidas de uma outra: a da concepção decorrente disso sobre a produção de subjetividade.

Essas linhas definem diferentes direções tomadas pelas teorias analíticas contemporâneas e, talvez, defina a sua possibilidade de sua sobrevivência, numa sociedade em permanente transformação.

Ao longo de sua história recente, a psicanálise passou por uma série de inversões, ainda que a principal seja a troca reducionista de seu polo de determinação. Daí ter oscilado em função da pressão cultural e social redefinindo os sujeitos da própria psicanálise.

Expliquemo-nos:

A psicanálise clássica, até pelo positivismo e materialismo científico de Freud, sofreu a tentação e até prendeu-se à camisa de força do reducionismo (o paradigma da redução ao conceito mais simples, ao elementar como chave explicativa) e da dicotomia dualista (consciente-inconsciente, pulsão de vida - pulsão de morte, princípio do prazer- princípio de realidade, sadismo-masoquismo, etc.).

Um exemplo clássico e até ingênuo desse reducionismo é a tese de Reich sobre a libido: esta seria uma espécie de rio que precisa correr em direção ao mar do orgasmo, sendo reprimida pela repressão imposta pela sociedade. A cura psicanalítica estaria basicamente em dar livre curso à libido em direção ao seu destino.

Apesar de ter nítida noção da complexidade da vida humana e da mente, Freud achou melhor prender-se ao modelo científico de sua época. Isso limitou muito o período heroico da disciplina, ainda que procurasse completar a visão da esfera humana com elementos da literatura, da tragédia, da filosofia.

Durante algum tempo, Freud raciocinou em termos de causa-efeito, como na lógica das ciências da Natureza. A uma causa advinha um efeito. A teoria inicial do trauma baseava-se claramente nisso. A noção de significação veio aos poucos e só com ela pôde dar o voo, por exemplo. para a teoria dos sonhos.

Uma grande pensadora das questões humanas e históricas, Hannah Arendt, não trabalhava com a ideia de "explicação”, que remete obviamente à de "causalidade", mas com a noção de "cristalização", ou seja, com "elementos subterrâneos" que se cristalizam em uma nova forma" de momento histórico ou de governo, na política (Jerome Kohn, in Hannah Arendt, a "Promessa da Política", Difel, Rio de Janeiro, 2008.)

Dizia ela; "a causalidade é uma categoria inteiramente estranha e falsificadora no reino" das ciências humanas. " Os elementos, por si mesmos, provavelmente nunca causam nada. Tornam-se origens de acontecimentos se e quando se cristalizam em formas fixas e definidas. Então, e apenas então, podemos retraçar a sua história. O acontecimento ilumina seu próprio passado, mas nunca pode ser deduzido do mesmo".

O paradigma do simples e da causalidade, em ciência, é um modelo destinado a pôr ordem no universo e a expulsar dele a desordem. A ordem reduz-se a uma lei, um princípio. Diz o conhecido epistemólogo Edgar Morin:

" A simplicidade quer o Uno, quer também o múltiplo, mas não pode ver que o Uno pode ser o múltiplo."

Em psicanálise, o conceito de condensação é uno ou múltiplo?

Na ciência natural a simplificação funciona, dá resultados extraordinários; Isaac Newton reduziu a sua teoria da gravidade a umas leis simples, mas nas ciências humanas -- e depois da física da relatividade e da teoria quântica, também nas naturais--, não é possível aplicar a redução sem prejuízo da apreensão do fenômeno. O princípio da redução funciona como a Navalha de Occam: o mais simples prevalece. Mas o campo da vida e da mente dos seres humanos é mais complexo. Na verdade, há uma hipercomplexidade.

Freud não compartilhava do extremismo de Reich, mas a psicanálise clássica estava pontilhada pelas formas de redução ao corpo e às energias simples. Inclusive na própria teoria freudiana. Mais tarde, um outro reducionismo se impôs: a pulsão de morte, na obra kleiniana, que por sinal tornou-a quase que sinônimo de agressão. Na teoria kleiniana em sua origem -- mas não em seus autores mais sofisticados--quase tudo tende para o princípio explicativo da agressividade como constitutiva da base do sujeito humano.

O pensamento dicotômico também está presente. Herança da filosofia cartesiana das "ideias claras e distintas”, moldadas pela simplicidade matemática, o pensamento polarizado ou dicotômico divide o mundo em bons e maus, lindos e feios, ricos e pobres, chiques e bregas, inteligentes e burros, relativistas e dogmáticos, freudianos e kleinianos, kleinianos e lacanianos, heróis e anti-heróis, bandidos e mocinhos.

Diz Denise Najmanovich: "Essas classificações são ideais para os amantes das 'ideias claras' e 'distintas'; salvo quando alguém quer situá-los em um bando “indesejável".

Os adeptos do pensamento dicotômico tendem, como diz, a se reunir sempre no paraíso e destinar os inimigos ao inferno. Quem está comigo é meu amigo, quem discorda é meu inimigo.

Na esfera humana, é impossível desconsiderar a multidimensionalidade para apreender um objeto que é, por natureza, multidimensional -- como diria também o filósofo Merleau-Ponty, um autor e uma alma irmã de Winnicott. No homem há reversibilidade e criação, abertura para o inédito e a colocação de novas formas e modos de ser no mundo.

Os processos formados pelo paradigma da simplificação levaram a psicanálise a sair do polo do corpo e da pulsão, da sexualidade e da vida mais concreta, para um subjetivismo, espiritualização e abstração crescentes. Foi quando o outro polo, o da mente, passou a ocupar tudo. Da existência concreta passamos para o mundo platônico das essências.

Hoje existe uma psicanálise que acompanhou a dissolução do sujeito -- na "pós-modernidade"-- e, parte dessa tendência, dirigiu-se para a esfera -- digamos-- espiritual. Em alguns casos, até mesmo religiosa. É uma psicanálise que recusa qualquer determinação pela ordem dos sentidos ou do sensorial, reduzindo a análise ou à linguagem ou à contemplação da Verdade, muitas vezes com maiúscula. Essa recusa do sensorial lembra demais a alegoria da caverna, onde os humanos estão mergulhados na cegueira do sensorial e a verdade só aparece atravessando os simulacros, as sombras.

Há uma vertente messiânica, mística e salvacionista nessa psicanálise. Ela foi -- com as teorias do pós-moderno e da dissolução do sujeito-- para o pólo oposto, num reducionismo ao ultra subjetivo, ao inefável, ao invisível e ao indizível. O inefável, o invisível e o indizível compõem a vida psíquica, mas não a constituem ou determinam na totalidade. Alguns desses psicanalistas falam da "busca da imaterialidade" não só como uma meta da análise, mas quase como uma missão. São exemplos extremos, mas expressivos da tentação à redução.

Nesse quadro, o pensamento nômade de alguns autores, entre eles o de Winnicott, aparecem como um antídoto para restaurar a saúde e sustentar o vigor epistêmico da psicanálise.

O corpo não pode ser negado como dimensão do ser. Não podemos esquecer que Freud começou pelo psicossomático, acolhendo as histéricas, suas anorexias, paralisias e bulimias. Era de se esperar que esses sintomas se convertessem em palavras e significação, mas a presença do corpo é condição com peso na determinação. Tem sua dimensão ontológica, na medida em que constitui a psique no processo de reversibilidade descrito tanto por Merleau-Ponty quanto por Winnicott, cada um à sua maneira.

A psicanálise sempre foi encarnada em suas origens. Mas também não é possível, reduzi-la ao corpo. Freud inventou a psicossexualidade. A sexualidade psíquica--e--física tem sua importância, ainda que também não resuma tudo. Para ele, quando escapou de seu positivismo, portanto de seu materialismo científico estrito, a sexualidade é dotada de sentido. É significação encarnada (“logoi embioi”, como diria o grego Castoriadis).

Penso que Winnicott nos convida a transitar por polos opostos e, ao mesmo tempo, convergentes. Fala de saída no psicossoma. O interno e o externo se imbricam e se relacionam. Não são antinômicos nem binários. O terceiro espaço é possível e está incluído. A novidade é que não há polos absolutamente determinantes.

A transicionalidade não estabelece escalas nem hierarquias a serem alcançadas, mas o progressivo desvelamento do sujeito, que não é dado de antemão.

Não há multiplicidades de identidades distintas e discretas, ainda que exista a diferença, mas o psiquismo é descrito como um processo que pode levar à integração. Há uma "Aufhebüng", para usarmos uma expressão emprestada de Hegel-- ou seja, um constante movimento de negação, absorção de elementos do que foi negado e de negação da negação. O que se costuma chamar de “superação”.

O mito da identidade fechada, acabada, cai por terra, mas não é substituído pela crença na ausência do sujeito. O sujeito e a autonomia se conquistam. Deixam de ser conceitos hipostasiados.

Winnicott não oferece teorias dicotômicas ou antinômicas, mas complementaridades dialéticas. Não é o único a fazer isso, mas tem o seu lugar contemporâneo ao lado de filósofos e de outros psicanalistas que colocam a criação em foco como a emergência do ser humano. Nesse sentido, não há nada mais atual --e vivo -- do que a psicanálise.

 


reinaldo thumbReinaldo Lobo é psicanalista, psicólogo, doutor em Filosofia Universidade de São Paulo, membro efetivo e professor da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e membro da International Psychoanalytical Association (IPA).