Da série O machismo nosso de cada dia - nº 1
Neste mês da mulher, eu não podia deixar de propor uma reflexão sobre gênero e machismo. Certa vez me passou pela cabeça a seguinte pergunta: quando um homem casado vai apresentar sua companheira a alguém, o que ele diz? A resposta pode ser tanto “Essa é minha esposa” quanto “Essa é minha mulher”. Mas e quando uma mulher casada apresenta seu companheiro? O que ela fala? “Esse é meu esposo”, “Esse é meu marido” ou “Esse é meu homem”, certo? Podia ser, mas infelizmente não é.
Você provavelmente torceu o nariz para a última das possibilidades acima. Por que soou estranho? Afinal, se o homem pode chamar sua esposa de mulher, por que a mulher não pode chamar seu esposo ou marido de homem? Parece-me que a resposta está no machismo nosso de cada dia.
Para começar, pense nas vezes em que a mídia ou outros meios de comunicação cultural lhe apresentaram uma personagem feminina falando “esse é meu homem”. Normalmente, essa frase está associada a alguém gritando, brava ou descontrolada e que nos é apresentada como sendo vulgar ou de baixo calão, não é mesmo?
Se pensarmos na desigualdade de gênero, a diferença de tratamento entre homens e mulheres começa a se descortinar. Quer ver? É bastante sabido que o preconceito contra as mulheres foi construindo historicamente uma concepção de que a mulher seria “naturalmente” destinada aos afazeres domésticos, um ser mais emotivo do que racional e com intuição aguçada. O homem, ao contrário, dentro dessa visão discriminatória que transforma lugares sociais em inclinações de gênero, seria intrinsecamente mais objetivo, alguém que se volta para a vida pública e para o trabalho.
A Psicologia não corrobora nada disso. Ao contrário, cada vez mais descobre-se a plasticidade do ser humano, ou seja, várias correntes da ciência psicológica têm caminhado para o reconhecimento da importância da cultura no desenvolvimento das pessoas, tão fundamental que é possível existirem uma infinidade de modos de ser, nenhum deles melhor ou pior do que o outro. Como dizia Simone de Beauvoir no “Segundo Sexo”, “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”.
Mas se tomarmos a concepção machista como critério, qual seria a importância do casamento para um homem e para uma mulher? Dentro da visão que relaciona a diferença entre eles e elas com a cisão entre público e privado, para o homem, o casamento é um fato importante, porém não essencial. Afinal, quando um homem é solteiro, ele pode até receber um ou outro olhar desconfiado em alguns círculos sociais mais conservadores, mas ele não será visto como um fracassado. O machismo tende a nos fazer conceber a solteirice do homem como uma escolha autônoma dele, em prol da carreira ou simplesmente para “curtir a vida”. A mulher solteira, ao contrário, é vista como alguém que falhou, que está sozinha por incapacidade e que, se pudesse escolher, com certeza estaria casada. Assim, dentro dessa perspectiva, o casamento é, para a mulher, a sua plena realização, o fato social que a viabiliza como um ser que seria naturalmente voltado para a intimidade, para o cuidado com os filhos, etc.
Talvez seja refletindo esse preconceito de gênero que a linguagem (umas das principais, senão a principal, expressão de uma cultura) cunhou os termos marido e mulher. Porque ser marido é apenas uma parte de um todo maior que é ser homem. Daí existir uma palavra específica para nos referirmos ao homem casado. Mas, como a cultura machista vê a mulher casada como o ideal cultural para todas as mulheres, não foi preciso, e nem sequer conveniente, existir a palavra “marida” ou qualquer outra mais específica para o antônimo de marido. Afinal, a cultura que oprime as mulheres não deseja que uma esposa seja apenas uma parte de um todo muito maior que é ser mulher. A cultura machista quer reduzir as mulheres à condição de esposa. Por isso transformou “mulher” em sinônimo de “mulher casada”.
Precisamos mudar isso, já que a linguagem não só é um instrumento que reproduz categorias sociais como também, tal como nos ensinou o psicanalista Jacques Lacan, algo que constitui e forma os próprios sujeitos. Penso que poderíamos passar sempre a utilizar o dueto esposo/esposa ou (por que não?) inventarmos uma nova palavra para a mulher casada dos tempos modernos, que é sim casada mas que também é muito mais do que isso. Que tal “marida”?
Mathias Vaiano Glens é psicólogo graduado pela USP e possui mestrado em políticas públicas para a infância e adolescência pela mesma universidade. Sua dissertação, “Órfãos de Pais Vivos: uma análise da política pública de abrigamento no Brasil” está disponível para download. Realizador desde 2016 do podcast Psicologiacast. Atualmente, é psicólogo do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. É palestrante nas áreas que envolvem Psicologia e Direitos Humanos e consultor/supervisor de instituições que trabalham na área social, inclusive realizando cursos e capacitações. Atua também na área clínica em consultório particular. Para acompanhar suas atualizações e publicações, siga-o no Twitter: @GlensMathias.