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Não precisamos só de uma lavagem a jato. Precisamos de uma verdadeira faxina geral

Conforme prometi, hoje gostaria de retomar o assunto que iniciei na coluna de mais ou menos dois meses atrás sobre corrupção. Hoje, com o processo de deposição de Dilma Roussef mais avançado, considero que já temos mais alguns elementos que merecem uma reflexão de ordem psicológica.

Tal como acontece com os grandes sofrimentos individuais, os momentos de crise social profunda também poderiam ser compreendidos como traumas: quando não são bem analisados e elaborados, tendem a se repetir de forma inconsciente, cronificando o sofrimento. Daí a superação dos traumas individuais e coletivos envolver a compreensão profunda de nossas repetições.

E podemos começar a fazer isso evitando um mecanismo de defesa dos mais simplórios: rechaçando a criação de bodes expiatórios sobre os quais recaem todo o ódio, impedindo uma reflexão mais acurada e bloqueando, inclusive, que reconheçamos que nós mesmos, em nosso cotidiano, reproduzimos em pequena escala as grandes corrupções sistêmicas e que, por isso mesmo, odiamos tanto. Porque quando odeio o político corrupto que aparece na televisão, isso me serve também para esconder o ódio que sinto do pequeno corrupto que existe dentro de cada um de nós.

Tal como Freud identificou em relação às psicopatologias, a corrupção não é um fenômeno que difere qualitativamente entre os indivíduos. Na verdade, o que muda é o grau em que determinado traço de personalidade se manifesta. Deixe-me dar um exemplo: se procurarmos bem, na maioria de nós existe um pouco de sadismo. Alguns, contudo, possuem essa característica tão mais intensa que denominamos esse fenômeno, no senso comum, de maldade. Com a corrupção, o princípio é o mesmo: existem pessoas menos corruptas e outras mais corruptas. O que não existe são pessoas imaculadas de um lado e completamente corruptas do outro.

Só que isso é só uma parte da história. Esses graus diferenciados dos traços de personalidade não se distinguem apenas de indivíduo para indivíduo. Eles mudam em um mesmo indivíduo de acordo com o contexto no qual ele se encontra. Um exemplo disso é o que Freud percebeu que acontecia com as pessoas quando elas são inseridas em grupos muito grandes (as massas): um indivíduo que normalmente age de um determinado modo, mais racional e civilizado, regride a formas de comportamento mais agressivas e de funcionamento mental mais primitivas. No caso da corrupção, isso significa que um mesmo indivíduo pode ser corrupto em um contexto e honesto em outro. E isso acontece porque a corrupção, assim como muitos outros fenômenos humanos, está menos associada a um “desvio de caráter” qualquer e diz mais respeito a processos de grupo. Assim, o discurso geral de que “todo mundo rouba” é extremamente danoso pois cria uma grupalidade que torna mais aceitável os atos inaceitáveis de corrupção pessoal.

É por isso que o combate à corrupção não se fará com punições exemplares, inerentemente sempre seletivas, mas sim com mecanismos institucionais amplos e gerais de transparência que visem a todos. Ou seja, ações que mudam o contexto no qual as pessoas estão inseridas e não punições que mirem supostamente consertar traços de caráter desviante. Hoje, o foco do discurso anticorrupção não está nos modos de implicação do sujeito com essa grupalidade mas foca-se no superego: mais castigo para endireitar os indivíduos desviantes. O que precisamos, na verdade, é de mais transparência para mudarmos o modo como o brasileiro enxerga a si mesmo e os outros ao seu redor. Não é só uma questão de crime e castigo, mas sim de um descaminho do sujeito em relação ao seu próprio desejo, um descaminho nos modos como ele quer ser reconhecido.

 


mathias glens homeMathias Vaiano Glens é psicólogo graduado pela USP e possui mestrado em políticas públicas para a infância e adolescência pela mesma universidade. Sua dissertação, “Órfãos de Pais Vivos: uma análise da política pública de abrigamento no Brasil” está disponível para download. Realizador desde 2016 do podcast Psicologiacast. Atualmente, é psicólogo do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. É palestrante nas áreas que envolvem Psicologia e Direitos Humanos e consultor/supervisor de instituições que trabalham na área social, inclusive realizando cursos e capacitações. Atua também na área clínica em consultório particular. Para acompanhar suas atualizações e publicações, siga-o no Twitter: @GlensMathias.