Uma das mais importantes formas de trabalho psíquico, a elaboração é um modo espontâneo de funcionamento mental - equivale à digestão. Um processo que transforma matéria bruta em material mais fluído pela formação de uma rede ideoafetiva, que permite dominar estímulos internos e externos, ao estabelecer conexões associativas com o patrimônio já consolidado de sentimentos e pensamentos.
Tomemos um estímulo externo que chega como um susto, um trauma. Após o evento traumático é comum haver um momento de silêncio e de falta de sentido, um vácuo, logo depois surgem ideias desorganizadas e emoções confusas, para que, lentamente, lembranças e sentimentos esparsos se associem em busca de uma narrativa que dê sentido ao evento inesperado – o trabalho elaborativo procura dominar as impressões caóticas e perturbadoras. Cria-se uma ou mais histórias, para pôr ordem na casa. Percebe-se o tamanho do machucado. A ferida se abre e se fecha, vem e volta inúmeras vezes até cicatrizar.
Outras vezes ideias e sentimentos difíceis de admitir, dolorosos, nos invadem e até nos dominam. São os estímulos internos, incontroláveis, que nos arrebentam por dentro - funcionam como se fossem ataques inesperados vindos de fora, estão no mesmo registro do trauma. A elaboração visa arrumar a bagunça causada pelo imprevisível em busca de assimilar esse novo elemento. Está no fundamento do bom funcionamento do psiquismo.
Há traumas que nunca cessam de pedir esse trabalho, pois equivalem a uma grande extensão de área machucada ou ao esgarçamento do tecido psíquico. Quando isso acontece o processo se torna ruminante e tende a falhar, implodindo o sistema psíquico. O tratamento analítico pode ser bem útil nesse momento.
Nem sempre acompanhamos todo o trabalho de elaboração, é comum haver uma corrente constante e imperceptível tecendo ideias e sentimentos na vida diurna, mas revelando seus resultados nos sonhos. São os sonhos elaborativos, que trazem um patrimônio considerável de conhecimento sobre nós, revelam verdades ocultas e nos fazem amadurecer. Não desperdice esses sonhos.
Luciana Saddi é psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SP), mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP e autora dos livros de ficção O amor leva a um liquidificador (Ed. Casa do Psicólogo) e Perpétuo Socorro (Ed. Jaboticaba). Assinou por mais de dois anos a coluna Fale com Ela na "Revista da Folha", do jornal Folha de São Paulo. Representante do Endangered Bodies no Brasil.
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