Jabuti, Juriti...Jabuti Alegre, Juriti Alegre...eram as palavras que repetia mentalmente enquanto tentava dormir. Não foi escolha, aconteceu assim que apaguei a luz e fechei os olhos acreditando que logo dormiria. O escuro do quarto, o aconchego da cama, o nublado da hora produziram instantaneamente as palavras Jabuti, Juriti, Alegre, por que não triste? Que eu falava e refalava em pensamento.
Era o nome da cidade onde meu pai nascera, no sertão de Goiás, que vinha me atormentar. Um visitante inesperado se intrometendo em minha cama. Não era Juriti nem Jabuti, era quase isso. Eu repetia incessantemente esses nomes tentando encontrar a letra, o som, a fórmula que me levasse à palavra faltante. Era Jabuti ou Jaboti, quase isso, acho que era Juriti, Juriti Alegre. Alegre ou triste? Por que Alegre? Não era. Afinal onde meu pai nascera? E porque eu tinha que me lembrar do nome perdido dessa cidade justo antes de dormir?
E se eu esquecesse para sempre? Se ninguém mais soubesse onde ele nascera? Senti medo do apagar das minhas luzes, da falta de memória a me rondar. Meus filhos certamente não saberiam onde foi que o avô nasceu, seria uma informação desinteressante e desnecessária. Triste e assustador é saber que sou a última pessoa viva a me preocupar com o nome da cidade onde meu pai nasceu. Quem mais se importa? Solitária, me imbuí do espirito de guardiã da memória de meu pai e lutei para que o maldito nome retornasse das sombras do esquecimento. Meu pai morreu há mais de dez anos. Meus filhos se lembrarão dele, meus netos, que nem existem, não se importam. Em pouco tempo não haverá mais ninguém a testemunhar onde ele nasceu, sua cor de cabelo, seu jeito de contar piadas. Pior que morrer é não ter ninguém para se lembrar da gente. Em duas ou três gerações seremos, todos, apenas nomes escritos em lápides. Alguns serão também nomes de rua repetidos com a emoção fria de um endereço dado ao motorista de taxi. Para retardar o total desaparecimento dos rastros de meu pai era necessário lembrar do nome da cidade onde nasceu. Perdido no sertão de Goiás e em minha memória. Nossos últimos instantes de vida, mesmo que póstumos, dependem da memória dos descendentes. O esquecimento seria então uma condenação dupla à morte. A primeira não pude evitar, ele estava doente, mas, a segunda só depende do resgate de um nome perdido entre um Juriti e um Jabuti.
Até ler Guimarães Rosa, nunca soube o significado da palavra - que era o nome da cidade onde ele nasceu - uma palmeira, um palmito, um cactos do sertão, por que Alegre? Ele viveu poucos anos lá e, ainda bebê mudou-se para outra cidade um pouco maior, Morrinhos, Morrinhos, não esqueci. Buriti, Buriti, palmeira mágica em conto de Guimarães, um símbolo da vida e da sensualidade. Buriti Alegre, meu pai e sua inesquecível forma de contar piadas.
Luciana Saddi é psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SP), mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP e autora dos livros de ficção O amor leva a um liquidificador (Ed. Casa do Psicólogo) e Perpétuo Socorro (Ed. Jaboticaba). Assinou por mais de dois anos a coluna Fale com Ela na "Revista da Folha", do jornal Folha de São Paulo. Representante do Endangered Bodies no Brasil.
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