Medeia é a personagem trágica e vingativa de Eurípedes. Astuciosa, mata a nova mulher de seu ex-marido Jasão, oferecendo-lhe um lindo vestido banhado em veneno e assassina os próprios filhos — não porque estivesse enloquecida com o abandono — mas pela ansia de provocar um arrependimento sem fim, um tormento insuportável chamado culpa, naquele que ousara abandonar-lhe.
Jasão, o pai, apaixonado e vivendo em novas núpcias, também havia sido negligente com os garotos, permitindo que a ex-mulher controlasse totalmente a vida dos filhos.
A arte imita a vida e, mesmo que Eurípedes tenha se inspirado nas lendas Tessalianas, não há como dizer que esse tipo de coisa acontecia apenas entre os gregos, no século V antes de Cristo. No século XXI ainda acontece e, não falo apenas dos crimes familiares que lemos, assustados, nas páginas policiais dos jornais. Falo da falta de cuidado, da negligência, do abuso e do uso com que muitas mães e pais tratam os filhos na hora da separação.
Nenhum abandono, nenhuma forma de separação conjugal, por mais terrível que seja, justifica colocar os filhos em situações daninhas e prejudiciais para atingir o ex-conjuge.
Crianças também têm que arcar com seus próprios sofrimentos diante da separação de seus pais, portanto, deveriam receber conforto e compreensão nesse momento. Mas, muitas vezes, são obrigadas a se tornar instrumento vingativo para produzir sofrimento no pai ou na mãe, em nome daquele que não aceita o final do casamento.
Podem ser transformadas em espiões, em reivindicadores sem fim de direitos e bens materiais, em bengalas emocionais, em instrumentos de agressão e controle de um contra o outro. É comum serem cooptadas a viver a dor do cônjuge abandonado!
A alienação parental, hoje contemplada no código penal, é um dos estágios horripilantes dessa guerra, em que crianças sempre são convocadas como soldados rasos, buxa de canhão e vítimas fáceis do ódio entre os pais.
Luciana Saddi é psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SP), mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP e autora dos livros de ficção O amor leva a um liquidificador (Ed. Casa do Psicólogo) e Perpétuo Socorro (Ed. Jaboticaba). Assinou por mais de dois anos a coluna Fale com Ela na "Revista da Folha", do jornal Folha de São Paulo. Representante do Endangered Bodies no Brasil.
Mais textos da autora